Numa frase, meio escondida entre inúmeras informações técnicas, ao final das cenas de “A Mula”, o roteirista Nick Schenk assume o caráter ficcional da história que ele escreveu, por encomenda de Clint Eastwood, produtor, diretor e astro do filme. Porém, no Brasil, “A Mula” foi considerado um “drama biográfico” pelas distribuidoras de vídeos. E, a imprensa o apresenta como “a história de Leo Scharp”.
O roteiro, de fato, como aquela frase deixa claro, foi “inspirado” numa única reportagem. Publicada em 2015, pelo New York Times. Entre tantas, escritas sobre Scharp. Traz a história de Earl Stone, personagem de Clint Eastwood. Um homem, perto dos 90 anos de idade, que aceita transportar drogas no seu carro, em suas intermináveis viagens – feitas, por imposição de suas atividades como floricultor -, pelo interior dos Estados Unidos.
Idoso, sem antecedentes criminais, com justificativas reais para aquele trânsito permanente nas estradas, Stone se torna “mula” dos sonhos dos traficantes de drogas. Função arriscada que ele termina aceitando, quando não mais conseguiu, na floricultura, renda suficiente para amparar materialmente sua família. Àquela altura, já desintegrada, num clima de rancor, por causa da permanente ausência dele. Stone quer resgatá-la. Para isto, sacrificou a antiga honorabilidade. Tranquilo, sem sentir-se atormentado, até com certa alegria.
Mas, um dia – era obviamente inevitável -, foi flagrado pela polícia, na estrada. Preso, ele assumiu sua culpa, dignamente. E, como prêmio, recebeu o perdão da mulher e da filha – mãe da neta a quem amava.
Assim, através deste roteiro contratado por ele, Clint mostra em mais um filme, a trajetória de um homem solitário. Alguém senhor dos seus atos, que escolhe um destino. Assumindo, sozinho, com coragem, a responsabilidade por ele. Numa visão de mundo que poderia se aproximar do Existencialismo, se não exaltasse tanto a família, como valor do conservadorismo político. E não desculpabilizasse a sociedade por influir perversamente, muitas vezes, nos destinos humanos. Ambas atitudes naturais, num fervoroso eleitor do Partido Republicano, como é o notável cineasta.
Dois elementos da biografia de Scharp receberiam destaque no roteiro, se ele fosse realista. E não tratados superficialmente, como no filme. Scharp não era apenas um velho que serviu ao tráfico. Era um herói americano, condecorado por bravura na Segunda Guerra Mundial.
Mais, ainda: era um gênio da floricultura. Depois da guerra, ele viajou muito porque recebeu inúmeros convites para expor suas experiências com polinização de flores. Foi Scharp quem criou o espetacular lírio “Ojo Poco”. Dotado de pétalas cor de damasco e "olho” vermelho, no centro. Aberto, só mede 6 centímetros. O lírio tem o nome científico de Hemerocallis Siloam Leo Sharp. Em homenagem a ele. O velho que “inspirou” Nick Schenk. Uma vítima de engrenagem social cruel dos EUA.
(Na ilustração: Clint Eastwood e Leo Scharp)