Numa entrevista por telefone, de Paris, Philippe Garrel conta a gênese da abertura de seu belíssimo O Amante por um dia, que estreou na quinta-feira, 15. Abre-se com duas cenas muito intensas. Uma ruptura amorosa – a garota que é expulsa de casa pelo namorado e sai aos prantos – e um casal que faz sexo. Alfred Hitchcock, o maior dos cineastas, segundo Garrel – mas não seu mestre -, alertava François Truffaut sobre o risco de se começar um filme num patamar muito alto. Hitchcock falava de suspense – como mantê-lo, nesse caso? Garrel conta.
“Esse começo surgiu muito naturalmente. O casal veio de um sonho que tive. Aos 69 (fará 70 em abril) ainda sonho com sexo (risos). A garota é mais real. Acordei de madrugada com o som de uma mulher chorando e carregando uma mala. Foi tão forte que eu sempre soube que haveria de colocar aquilo num filme.”
Um professor universitário, de 50 anos, tem um affair com uma estudante. E ocorre de sua filha, tendo terminado com o namorado, voltar a morar com ele. Nosso herói se vê às voltas com duas jovens mulheres. Éric Caravaca é quem faz o papel. A filha é a filha do próprio Garrel, Esther. “Tem gente que acha que o filme é autobiográfico por causa da presença de Esther. Mas eu dirigi Louis (Garrel), que também é meu filho, mais de uma vez, e ninguém me veio com esse tipo de questão. Acho que revela alguma coisa do mundo em que vivemos, a questão dos gêneros. Como homem, posso dizer que entendo bastante o comportamento masculino. Já a mulher é sempre mais fantasiosa. Queria muito investigar o comportamento feminino de uma forma realista, acurada. Esse ponto de vista feminino me veio pelo roteiro. Tive duas colaboradoras, e uma delas é Caroline Deruas, minha mulher”, explica o diretor.
Há um terceiro crédito de roteiro – para Jean-Claude Carrière, o escritor que foi roteirista na fase final de Luis Buñuel. “Carrière tornou-se imprescindível para mim. Como roteirista, dramaturgo, ele domina a escrita para cinema, mas não estou falando disso. Carrière tornou-se uma referência paterna muito forte para mim. Não tenho nenhum problema em admitir que a maior influência em minha vida foi a de meu pai. Sou filho de atores, Maurice e Martine Garrel, e acho que por isso sempre tive uma relação muito forte com meu corpo. Maurice trabalhou com grandes diretores – Truffaut, Costa-Gavras, Claude Chabrol, Claude Sautet, Jacques Rivette. E ele morreu aos 88 anos, em 2011. Tinha uma vasta experiência de vida, e de cinema. Embora já tivesse mais de 60 anos, senti-me órfão. Carrière veio preencher um vazio.”
Psicanálise elementar, caro leitor. “Truffaut dizia que o amor é o grande tema, e você pode dizer que O Amante Por Um Dia é um filme sobre o amor, sexo, traição. Mas, para mim, o tema é a psicanálise, essa vontade de ir fundo nos gêneros.” Essa questão do gênero ultrapassa sexo – homem, mulher. Nos áureos tempos do vídeo, as locadoras dividiam os filmes por gêneros – comédia, drama, ficção científica, cinema brasileiro. Assim como o cinema do Brasil se constituía num gênero, pode-se dizer o mesmo do francês, segundo Philippe Garrel. Filmes em preto e branco, com muita conversa, muito sexo. Sobre o preto e branco, o diretor gosta de teorizar. “Truffaut dizia que os filmes em PB eram mais bonitos, e eu entendo perfeitamente. Veja que já existiam experimentos coloridos no tempo de (Georges) Méliès, mas o preto e branco, que faz a beleza das cenas filmadas pelos (irmãos) Lumière, sempre teve um embasamento muito forte na realidade.”
Curiosamente, o “chamado realista” foi o tema da Mostra Aurora deste ano e, desde quinta, 15, o evento substitui a grande retrospectiva de Luchino Visconti no CineSesc. É interessante ouvir o que Philippe Garrel tem a dizer sobre influências. “Adoro Truffaut, (Jean-Luc) Godard, (Michelangelo) Antonioni e (Ingmar) Bergman, mas não penso neles quando estou filmando. Vou dizer uma coisa que pode parecer contraditória. Leciono cinema no Conservatório (de teatro). E todo dias meu método é muito prático. Discuto os autores com eles (os alunos) e depois vamos para a ruas filmar pequenas cenas ou improvisações baseadas em Jean Eustache, John Cassavetes, Jean Renoir. Eles adoram, e eu também. Fica uma coisa muito viva. Muitos desses alunos terminam integrando minhas equipes de cinema. Muitos estão em O Amante Por Um Dia.”
Garrel não acredita em referências porque, como diz, “se você começa a imitar o estilo dos outros vira um acadêmico. É melhor inspirar-se diretamente na realidade, mas sem querer reproduzi-la.”
Esse compromisso com o real leva a um outro tema – o cinema político. “Estamos vivendo uma época de alienação, de despolitização muito forte. E não é de agora. Tive muitos problemas para levantar os recursos para Amantes Constantes. Ninguém queria um filme sobre Maio de 68. Sinto dizer que o mundo virou antirrevolucionário.” Mas ele insiste, e em O Amante Por Um Dia o professor discute política, a Guerra da Argélia, com os alunos. “Na época, o assunto era tabu na França. Alguma referência num Godard, O Pequeno Soldado. Quem teve coragem de enfrentar o problema foi Alain Cavalier. LInsoumis (Terei o Direito de Matar?), com Alain Delon, é uma obra-prima. E antes ele já tinha feito Le Combat Dans Lîle (Paixões e Duelo), que também é um grande filme.”
Ainda um elogio de Garrel – para seu ator, Éric Caravaca. “Conheci Éric, e comecei a admirá-lo, graças a meu pai, que foi seu mentor.” Tudo se completa no imaginário de Philippe Garrel. E, sim, O Amante Por Um Dia é um grande filme que você já pode ir reservando como um dos melhores do ano.