A leitura do conto O Terror de Roma, do escritor italiano Alberto Moravia, tanto impressionou o dramaturgo Plínio Marcos (1935-1999), que foi sua inspiração para escrever uma de suas principais peças, Dois Perdidos Numa Noite Suja, em 1966.
Seu mérito foi transportar a história para o submundo brasileiro, criando uma obra de virulência até então desconhecida. Dois homens confrontam-se em um espaço cênico sórdido, um quarto de hotel de última categoria: Tonho é um interiorano, que busca emprego, mas tem consciência de sua dificuldade de adaptação na cidade grande. Paco é o excluído que, por ser marginalizado, responde às próprias frustrações com um sadismo feroz.
O tempo não arrefeceu a força do texto, como comprova a montagem em cartaz no Teatro J. Safra. Dois jovens atores, Kayky Brito e Rodrigo Simas, enfrentam o desafio de viver Paco e Tonho, respectivamente. Sob a direção de Luiz Valcazaras, eles vivem uma situação de perder o fôlego: a trama se concentra na divisão do produto de um roubo e a disputa por um par de sapatos desencadeia uma violência crescente até culminar em um assassinato. Até chegar a esse momento, a peça desenvolve-se como em uma situação-limite em que os personagens duelam entre si com uma linguagem cortante. Kayky e Rodrigo responderam às seguintes questões.
Dois Perdidos traz um texto impactante sobre o comportamento da marginalidade de uma época. Como você vê hoje essa visão mais antiga dessa marginalidade – os tempos são outros, mas o que se manteve até hoje? Kayky Brito – O texto fala sobre dois jovens que vivem à margem da sociedade, ou seja, no extremo da pobreza e almejar ser da nobreza. Quando se trata de marginalidade, não importa a época, pois o normal é querer estar num lugar bom e confortável e isso acontece em qualquer tempo da sociedade. Quando o mal é praticado, não tem tempo nem lugar e, na peça, o sapato é uma metáfora: como quando você tem um estudo e uma entrevista de emprego, porém lhe falta o sapato para ir nesta ocasião.
Rodrigo Simas – A marginalidade sempre existiu, e acredito que muito pode ser pela falta de oportunidades. Hoje, com o crescimento da população, com a falta de estudo e todas as drogas na rua como o crack, a marginalidade se tornou ainda mais violenta e triste.
Tonho e Paco são dois jovens brutalizados, algo imposto pela situação em que vivem. Como foi o trabalho de composição de seu personagem? Você se inspirou em algum personagem já existente?
Kayky – O trabalho foi totalmente do nosso diretor Luiz Valcazaras. Nós nos baseamos em peças como Esperando Godot e também filmes como Clube da Luta e Laranja Mecânica. O texto continua intacto, porém a contingência final ficou aos olhos do nosso diretor.
Rodrigo – Além do texto que já nos propõe um estado de brutalidade, Valcazaras, nos deu referências de filmes – além daqueles, Cães de Aluguel também foi uma inspiração.
O que marca o texto é sua alta dose de raiva e transgressão. A partir de seu repertório emocional, como você lida com esses sentimentos tão intensos?
Kayky – Paco, sim, é tinhoso na sua própria teimosia, na sua deslealdade por não ter tido uma oportunidade na vida e não sabe, ao mesmo tempo, avaliar a oportunidade que está em suas mãos. Ele tem um belíssimo sapato, mas isso só agrava a situação, pois não sabe o que tem em mãos. Vivo os sentimentos na hora que estou em cena e os ensaios, sólidos, colaboraram para o resultado.
Rodrigo – Simplesmente estando presente. A história por si só já nos leva a esses sentimentos. E vendo a peça não pelo fato de ser só um simples sapato, mas esse sapato sendo uma metáfora de oportunidade de vida.
Se vivesse o outro personagem, como o faria?
Kayky – O Tonho só precisa dessa chance do sapato, então uma boa dose de angústia seria belíssima para a composição, e isso o Rodrigo está fazendo de forma intensa.
Rodrigo – Só estudando e experimentando para descobrir como seria essa construção. Paco e Tonho têm tantas questões interessantes que nos dão grande prazer de vivê-los.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.