O Diabo Velho está sendo muito criticado por ter atingido uma cantora baiana com seu tridente perverso, aquele com o qual fere a dignidade de outras pessoas. Mas, ele usa este seu instrumento incandescente há 50 anos, impunemente. Sem ter provocado maior repulsa social porque suas vítimas habituais não tem a riqueza, nem a fama da cantora.
Quando eu tinha 20 anos, trabalhava como repórter numa revista especializada em televisão. E, era obrigado a frequentar os bastidores do programa dominical do Diabo Velho. Líder de audiência. Com pico alcançado no quadro “Rainha Por Um Dia”.
A produção do programa punha diante da plateia quatro ou cinco pessoas extraídas das situações mais cruéis geradas pela miséria. A jovem que morava sozinha na rua, depois de perder os pais. A mãe viúva que não conseguia alimentar os filhos após a morte do marido com câncer. A doente incurável, sem dinheiro para comprar remédios. Assim por diante. Aquelas criaturas, na frente das câmeras, revelavam detalhes de suas tragédias privadas. E, recebiam aplausos. A que contasse detalhes mais chocantes recebia mais aplausos. E se tornava a “Rainha Por Um Dia”. Sentava num trono. E ganhava geladeira, mesas, cadeiras, fogão e outros produtos. Todos expostos para venda na cadeia de lojas do Diabo Velho.
Poucos percebiam que, durante a exibição do quadro, era turbinada a venda de carnês, entre pessoas de baixa renda. Aquelas que se identificavam com as “rainhas”. E sonhavam em ter acesso aqueles produtos. Assim, eram induzidas a comprometerem parte dos seus poucos ganhos em compras nas lojas do Diabo Velho. Através dos carnês, numa transação insólita. Pois ficavam obrigadas a pagar antecipadamente. Só podiam retirar os produtos das lojas quando tivessem quitado completamente todas as prestações dos carnês. Deste modo, a custo zero, o Diabo Velho concentrava em suas mãos, rendas obtidas por elas. O que lhe permitia aplicá-las, imediatamente, na Bolsa de Valores. Multiplicando, assim, o lucro garantido com a venda dos seus produtos nas lojas, ao final do pagamento das prestações.
A desistência nas compras ele evitava distribuindo semanalmente prêmios de diferentes valores. Sorteados durante seu programa. O que, de lambuja, lhe dava um público cativo. Mas só recebia os prêmios quem estivesse em dia com o pagamento dos carnês.
No programa, o Diabo Velho girava uma grande roleta instalada em leve painel de tapume montado no seu palco. O prêmio a ser entregue era apontado por uma agulha fixa, na roleta. Nenhum repórter podia permanecer na área dos bastidores, atrás do tapume. Onde, no entanto, estavam funcionários do Diabo Velho, com facilidade para controlar o giro da roleta.
Hoje, o Diabo Velho tem hoje 11 mil funcionários. E patrimônio avaliado em 4 bilhões de dólares. A idade entortou sua coluna vertebral. Sua cabeça parece fincada por detrás do peito.
No desrespeito à cantora há quem veja demência senil.
Será?
(Ilustração, o Diabo, numa gravura de J. Borges, em capa de cordel)