Exceto pelo valor individual de muitas obras que apresenta, a 14ª Bienal de Istambul tem tudo contra ela. As tensões político-econômicas; a singularidade de cada trabalho dentro de um contexto coletivo artificialmente unificado; as contradições entre as intenções, o discurso curatorial e o resultado; a topografia particular da exposição em relação a uma cidade global de 5 mil e 343 km2, além das ilhas; e, por fim, o desprezo dos organizadores pelos limites físicos, conveniência geográfica e proveito intelectual do seu público.
Espalhada por 36 locais com mais de 100 participantes notáveis instalados em sete espaços ou distritos – entre museus, casas particulares, barcos, garagens, depósitos, lojas, centros culturais, escolas, etc. – perfazem este evento. Tomemos apenas um distrito: Beyoglu, situado na margem europeia do Bósforo e separado da cidade antiga pelo estuário Corno de Ouro. Aqui, quem quiser visitar os 21 sítios esparsos sem nenhuma interrupção (o que é impossível) deve percorrer 12 km entre as partes altas e baixas de um terreno de escadas e ruas escarpadas, gastando mais de 12 horas no total, ou seja, bem mais do que o “dia” preconizado pela curadora Carolyn Christov-Bakargiev em seu esotérico e extrapolado guia, pleno de comentários subpoéticos para imbecis.
Já para ver parte da obra de Lawrence Weiner, uma das figuras centrais da arte conceitual, no norte do Bósforo (as outras partes estão no museu Istambul Modern e também na Casa Garibaldi, que foi fechada por questões de segurança) – separada por 40 km do trabalho de Andrew Yang, na mesma zona -, é preciso percorrer mais 35 km. Isso sem contar os demais espaços e as ilhas do Adalar na região de Mármara, sobretudo Büyükada e suas altas colinas, a 30 km de barco, onde se encontram oito artistas, entre eles o célebre e polivalente William Kentridge. Sem falar que a 4 km dali encontra-se Sivriada, ilha escolhida por Pierre Huygue para uma instalação “a longo termo”, ainda invisível, que só poderá ser imaginada ou visitada com um barco que funciona uma vez por semana. Sem falar também na exposição coletiva da qual participa a brasileira Lucia Koch que dificilmente será vista em uma ilha grega, a 710 km de Istambul.
Em essência, esta é uma Bienal para não ser vista. Vê-la, mesmo que parcialmente, é um ato heroico. Trata-se de um evento discriminatório, só serve aos espectadores válidos, jovens, abastados, e sem problemas motores. Além disso, ao contrário da concentração de Veneza e da liberdade de movimento que geralmente suscitam as suas bienais, aqui a imposição e regimentação topológica da arte aplanam, justapõem e dissipam as manifestações. Como nos fenômenos botânicos, ocorre uma espécie de deiscência onde o desmembramento faz esvair o conteúdo.
Daí uma das razões, penso eu, do artificial, gratuito e desmedido discurso unificador da curadora no catálogo/livro que – ao invés de olhar com profundidade a produção artística e tirar dela as suas ideias – surfa oportunisticamente sobre informações, conhecimentos e tendências, fazendo-os “colarem” sobre a arte que escolhe e expõe. Como não é a arte cambiante que a interessa realmente, é sempre o que lhe é externo que ela procura.
Assim, Carolyn (que deveria ter parado na ótima Documenta 13) recai em armadilhas, como a da rivalidade entre arte e ciência, confronto que denota o eterno complexo da primeira em relação à segunda. Também transvia-se em pretensões absurdas como a sua teoria do orgânico estilo “neo art nouveau”, em divagações ingênuas como a das “formas pensadas”, sinestesia, antropocentrismo, teosofia e Madame Blavatsky; em associações esdrúxulas que ligam tudo com tudo, num palavreado pseudofilosófico, abstrato, místico, utópico, new age, sobre “água, sal, mar, linhas, alianças, nós, ondas” – devaneios poéticos bachelardianos com os quais tenta justificar a presença dos (ou costurar os) produtos da mostra entre si. Os eruditos da Idade Média citavam Aristóteles, hoje eles não conseguem não citar Lacan…
Dizer que as obras, de fato interessantes porém insuficientes e sem qualquer destaque, de Cildo Meireles e Kracjberg estão no “centro da exposição” é mais uma falácia dentro da confusão Bakargieviana. Como grande parte de bons artistas, eles também não estão representados condignamente. Salvo algumas concepções curiosas como a de assimilar o artista Arshile Gorky ao Museu da Inocência do prêmio Nobel Orham Pamuk, e alguns trabalhos individualmente excepcionais – como os de R. Smithson, Sarkis, Pistoletto, os canadenses Ibghy e Lemmens, Ettinger, Rakowitz, A. Yang, Villar Rojas, Tacita Dean, F. Zeid, J. Cardiff & G. B. Miller, entre outros -, a exposição preocupa-se mais em fazer uma síntese.
Diante das inúmeras questões, sobretudo políticas, que hoje dominam a nossa vida – entre as quais, o perigoso conceito de Parrehsia (o falar verdadeiro) que leva à morte, o sofrimento dos armênios e dos povos indígenas da Austrália, o que enfrentam os azerbaijanos na Armênia, o relacionamento conturbado da Turquia com os curdos, as penas dos imigrantes sírios nas fronteiras deste país -, temos um dilúvio avassalador de perguntas sem resposta. Aqui, a “água salgada” – título dado à Bienal – não é lenitivo nenhum ao desespero e à miséria humana.
Assuntos demais podem, paradoxalmente, significar uma falta. Ao impor o seu ponto de vista alinhavando o que não pode ser unido, a 14ª Bienal de Istambul torna invisível o que pode ser visível.