Variedades

O fichário de Carpeux

Viena, por volta de 1936. Otto Maria Carpeaux (1900-1978), um jovem pesquisador austríaco com interesses variados – estudou de direito a matemática, passando por quase todas as ciências humanas – se depara com o novo número da revista Orient und Okzident e lê, ali, um texto de Walter Benjamin (1892-1940), então um ilustre desconhecido crítico literário alemão, sobre Nikolai Leskóv, escritor russo do século 19. Faz o fichamento do artigo. Ou guarda o recorte. Ou guarda na memória, não se sabe.

Três anos depois, fugindo da guerra, Carpeaux desembarca no Brasil, onde inicia sua carreira e se torna um dos críticos literários mais respeitados do País. Quatro anos depois da publicação, Benjamin, também por causa dos nazistas, se mata – e passa anos esquecido.

A história dos dois volta a se cruzar, em segredo porque isso não foi dito ao leitor, em 1942, nas páginas do Correio da Manhã. Foi quando Carpeaux publicou Rússia Sacra, sobre um autor desconhecido dos brasileiros: Leskóv. Ao contrário de outros textos do crítico que saíram no jornal entre 1941 e 1943 e que se transformaram em orelhas e prefácios de livros, esse caiu no esquecimento e só foi redescoberto agora pelo pesquisador Bruno Gomide. Enquanto trabalhava em sua tese de livre-docência sobre a recepção da literatura russa durante o Estado Novo, defendida em junho na USP, ele estranhou aquele artigo tão parecido com O Narrador, o tal texto de 1936, único de Benjamin publicado em vida e que se tornou fundamental na academia muito tempo depois – o crítico alemão só ficou conhecido no Brasil nos anos 1960.

“Eu fui lendo e vi que era O Narrador sem tirar nem pôr. Fiquei impressionado porque eu não esperava isso do Carpeaux, mas ele foi, e continua sendo, um grande crítico, uma pessoa importante na história intelectual brasileira e não quero, de modo nenhum, e tentei tomar muito cuidado na tese, desqualificá-lo sumariamente”, diz Gomide. Para ele, o conjunto da obra que escreveu sobre literatura russa continua impressionante e eficaz. “Ele era certamente um bom leitor. Conhecia os autores e textos críticos, tinha as referências.” E completa: “Mas ele colocou um ensaio inteiro do Benjamin, brilhante, como se fosse dele. E isso é algo com que nós, admiradores do Carpeaux, temos que lidar de alguma maneira, interpretar”.

Boa memória? Esquecimento? “É impossível que nesse texto Carpeaux tenha sido traído pela memória. Não dá para uma pessoa escrever tudo aquilo, lembrar de todos os detalhes e esquecer que o texto é de outra pessoa. Por melhor que fosse a memória dele, é impossível”, diz.
Um problema de edição, então? Uma nota ignorada pelo jornal? “Pode ser. Só isso o salvaria”, responde. O pesquisador, no entanto, descartou a hipótese porque em outras situações o crítico indicou a origem do pensamento ou das frases reproduzidos e, principalmente, porque O Narrador serviu de inspiração, mais discreta, para outro texto feito em 1943 sobre o americano Thornton Wilder.

Quem descobriu isso foi Mauro de Souza Ventura, hoje professor do departamento de comunicação da Unesp de Bauru. Mas ele preferiu não chamar a apropriação de plágio em sua tese de doutorado defendida em 2000. “Claro que estamos diante de um fato de interpretação literária difícil, mas eu diria que por serem contemporâneos, eles refletiram sobre as mesmas coisas. Não digo que descarto o plágio e acho que ele pode, sim, ter se apropriado de uma ideia e não ter citado a fonte. Mas pode ter sido por ele achar que a ideia podia ser dele, que ele também pensava aquilo”, comenta o professor.

Depois de sua descoberta, Gomide conta que começou a olhar os textos do crítico sobre os russos com mais cuidado, e encontrou outras casos – como o ensaio sobre Goncharov e seu Oblomóv, só traduzido recentemente para o português, em que ele o chama de “poeta do verão”, expressão retirada, também na surdina, de um ensaio de 1937 do italiano Renato Poggioli. Tão desconhecido como era Benjamin à época da publicação de O Narrador. Mas os dois ficaram famosos e a escorregada, ou a desatenção, de Carpeaux apareceu.

Gomide diz, ainda, que quando fala em plágio não se refere só a ideias e concepções gerais benjaminianas. “Carpeaux usou as passagens literais, o que é, no mínimo, complicado. E indefensável. Isso deve ser levado em consideração pelo menos pelos que forem tratar de sua obra.” Para ele, é preciso olhar caso a caso, ler Carpeaux criticamente, mas não deixar de considerar seus insights e o papel importante desempenhado na revisão e apresentação de autores russos. “Claramente, ele mobilizou um repertório de leitura acima da média dos críticos brasileiros da época. O problema é que, olhando mais de perto, achamos essa questão que é espinhosa. Como vamos lidar com isso? Em que medida ele não fazia isso para outras literaturas?”

O pesquisador sabe que está mexendo num vespeiro, já que o autor de História da Literatura Ocidental é célebre até hoje, e espera dor de cabeça. Mas acha que é preciso estar mais atento. “Eu o tinha em altíssima conta e agora sempre vou desconfiar um pouco, principalmente dos ensaios iniciais. Temos que conciliar e tentar entender como esse sujeito tão erudito fez isso. Nessa situação específica, acho que ele bobeou.”

Erudição que sempre deixou Rubem Braga, seu desafeto, desconfiado e que o levou a dizer que o Brasil era o país ideal para a exibição do seu fichário. “É que o nosso erudito tem o poder mirífico de colecionar fichas de citações em várias línguas, e derramá-las em confetti sobre a cabeça daqueles a quem quer agradar.” Talvez o cronista não suspeitasse de plágio, talvez invejasse seu conhecimento, mas sabia que o crítico era um bom leitor.

QUEM É
Bruno Gomide
Pesquisador
Nascido no Rio (1972), é doutor em Teoria Literária pela Unicamp e acaba de defender a tese de livre-docência na USP, onde é professor de literatura russa e coordena a pós-graduação da área. Entre outros livros, publicou Da Estepe à Caatinga: O Romance Russo no Brasil (1887-1936), que saiu pela Edusp, e organizou Antologia do Pensamento Crítico Russo (1802-1901) e Nova Antologia do Conto Russo (1792-1998), ambos para a 34.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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