Há cinco anos, quando foi publicado, o livro Maldicidade, do fotógrafo Miguel Rio Branco, estampava na capa do volume, editado pela Cosac Naify, o braço de uma mulher caída no chão. Poderia estar morta, como nas cenas de crime de Weegee (1899-1968), ou apenas dormindo. O mundo era indiferente a esse drama. Agora, com o lançamento internacional de uma versão expandida produzida pela editora alemã Taschen, mudou a capa, mas a tragédia dos excluídos continua a mesma. É o que se pode ver tanto no livro como na exposição individual Maldicidade, que será aberta hoje, às 19 horas, na Galeria Luisa Strina, com uma sessão de autógrafos do fotógrafo.
Com projeto gráfico do próprio Miguel Rio Branco, assistido por Isidora Gajic, o livro Maldicidade é uma imersão no universo estético de um fotógrafo estreitamente ligado ao cinema e à pintura. Como sugere seu título, trata-se de uma investigação antropológica e arquitetônica da ruína das metrópoles – explícita nas cidades dos países subdesenvolvidos, mas não exclusivamente neles, como mostram as fotos, registradas entre os anos 1970 e a época atual. A miséria e o desamparo só cresceram nas últimas quatro décadas, como se percebe nas imagens recentes, ampliadas em relação ao livro original, de formato menor.
A série Maldicidade dá prosseguimento ao ensaio fotográfico que teve início quando Miguel Rio Branco morou em Nova York, nos anos 1970, convivendo com a turbulência e a marginalidade da capital americana – as imagens, em preto e branco, estão agrupadas numa das paredes da galeria. Em 1978, com a exposição Negativo Sujo, o fotógrafo, vindo do cinema, fez seu trabalho convergir para uma narrativa poética de caráter eisensteiniano, ou seja, para um método tonal e associativo em que cada fragmento é importante para a composição de um quadro. Em outras palavras: o trabalho de edição corresponde a uma técnica arquitetônica em que cada elemento preserva sua autonomia, como blocos de uma construção, mas se organizam como compassos musicais.
Essa analogia com a linguagem musical não é de todo estranha ao trabalho de Miguel Rio Branco, cujo ponto de ruptura foi a série dedicada à comunidade Maciel no Pelourinho, em Salvador, realizada há exatos 40 anos. Ele lembra que passou um semestre convivendo com as prostitutas e os marginalizados para realizar a série, que resultou num filme. As fotos foram exibidas há dois anos numa retrospectiva do fotógrafo no Masp.
As cores saturadas apenas disfarçam o gosto que Miguel tem pelo preto e branco – ele admite que teria escolhido para a capa a foto da contracapa do livro, um menino e uma menina espiando através de um buraco, na melhor tradição chapliniana, mas a Taschen preferiu a imagem de uma prostituta de um bordel de Luziânia, em Goiás, perto de Brasília. Com mais ouro nos dentes que uma igreja barroca, ela, de fato, é a síntese entre esplendor e miséria, entre o incorruptível (o ouro, que designa a santidade na tradição pictórica) e a degradação.
Miguel, filho de um diplomata e descendente do barão e do visconde do Rio Branco, sente certa identificação com esses personagens marginais. Sendo obrigado a mudar de país constantemente por causa do pai, ficou desenraizado e hoje não se sente particularmente ligado a algum nicho social ou país, embora grande parte de seu portfólio cubra regiões da América Latina. Com dupla nacionalidade (a avó do fotógrafo era francesa), ele diz, no entanto, que criou raízes em outros países. “Afinal, temos todos os mesmos problemas, que poderiam ser resolvidos com boa vontade.”
É o caso das tribos indígenas, que ele acompanha desde os anos 1980, quando realizou um de seus trabalhos icônicos, Diálogos com Amaú, momento disruptivo em sua vida, hoje no acervo de Inhotim. “A sociedade brasileira nunca soube ver o índio”, comenta o fotógrafo, que hoje mora em Araras, na serra fluminense, distante do burburinho das grandes cidades que retrata.
O Brasil de hoje, observa, “é o país do bangue-bangue, sem lei”. Já era na época em que Miguel fez os stills do filme Pindorama (1971), de Arnaldo Jabor, fotografado por Affonso Beato, alegoria sobre a corrupção de um país imaginário fundado no século 16 por D. Sebastião. “Só que ficou pior”, conclui. “Tudo ficou muito primário – e só comparar a produção atual com a de Sérgio Larrain e Letizia Battaglia, exposições magistrais (em cartaz no IMS).”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.