Mundo das Palavras

O homem com a filhinha nas costas

O homem com a filhinha nas costas sente o pequeno peso dela encantado com a leveza da dimensão exígua de um corpo onde se concentra seu amor, tão denso. Um amor espantado, maravilhado, porque ele, o homem, um pé de mamão, com seus gametas, fertilizou o ventre da mulher com aquela linda goiabinha.
 
A filhinha, ele sabe bem, não vai protagonizar a mesma história – sua, de seu pai, do irmão, do mamãozinho – com as dores e glorias (duvidosas) que conhece. Com ela, a goiabinha, não haverá a mesmice natural imposta pela ligação com seu menino, nas secretas disputas entre machos e machinhos. Ao homem, com sua filhinha nas costas, assim, cabe cultivar a terna surpresa de ter, ali, tão perto dele, um serzinho diferente de todos os seres do gênero dela, com os quais conviveu e conviverá. Tão pequenina, ela já está predestinada ao desfrute, mais tarde, do maior de todos os poderes. O qual ele jamais terá. O de abrigar dentro de si outra pessoa. Numa inferioridade, sem consolo, na Terra, no cosmo, na mais profunda camada oceânica, onde quer que ele busque um feito, que lhe dê emoção semelhante.
 
Por isto, resta o amor, ao homem com a filhinha nas costas. Amá-la tanto, como quando se compreende: é definitivo aquilo que nos separa de uma pessoa como ela. Alguém que será sempre intrigante e desafiadora, pois, capaz de apreciar a vida de um ângulo distinto do nosso. Mas, é exatamente este deslumbramento por ela a força que une o homem à menininha.
 
Uma força que fez o jovem cozinheiro salvadorenho Óscar Alberto Martínez Ramírez recobrir com o pano de sua camisa a pequena Valéria, de 23 meses de idade, quando instalou-a nas suas costas, para dar-lhe maior segurança. E, se jogou nas águas do Rio Grande, na fronteira do México com os Estados Unidos. Buscando alcançar, no outro lado do rio, o país onde, acreditava, ela poderia se desenvolver – estudar, ter profissão, ser feliz. Agora, encalhados na margem do rio, estão seus corpos, mostra a imagem veiculada pela imprensa. Ainda repartem o pano da mesma camisa, porém, já sem vida, com rostos afundados nas águas do rio. Numa cena terrível de desamparo e amor desesperado que ofende a sensibilidade de quem tenha qualquer vestígio de sentimento humano. Escandalosa denúncia do grau de monstruosidade abrigada nas almas dos poderosos que decidem a sorte de latino-americanos, naquela região. Tristíssimo registro da brutalidade político-social contra um homem sonhador com sua filhinha nas costas.
 
(Na ilustração: outro pai salvadorenho, com seu garoto, animado pela mesma esperança de Oscar)

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