O impacto do coronavírus na política

Se não é possível prever quando nem como terminará a situação antes impensável que o mundo vive hoje, em função do impacto da covid-19, pelo menos algumas diretrizes podem ser listadas para projetar um cenário pós-coronavírus e amenizar as consequências dessa paralisação social, econômica e, em alguns casos, política.

A completa imprevisibilidade das ações do Palácio do Planalto, ora favorável ao isolamento ora explicitamente contrário, somada ao avanço do número de vítimas fatais e à incerteza de um futuro pela falta de renda ou mesmo pelo risco de morrer, resulta em debates que envolvem desde um eventual afastamento do presidente Jair Bolsonaro até o fortalecimento do Estado, passando por um pacto de conciliação e de uma cada vez mais necessária união das forças democráticas.

O jornal <i>O Estado de S. Paulo</i> reuniu 14 nomes da ciência política, da sociedade civil e da área jurídica para apontar esses caminhos. Todos são unânimes em afirmar que é preciso uma mudança de postura da classe política.

<i>Ayres Britto, jurista, professor e ex-ministro do Supremo Tribunal Federal</i>

<b>É preciso proteger saúde e economia</b>

"O impacto só pode ser o da conciliação das coisas: proteção da saúde da população e da ordem econômico-financeira do Brasil, mais o direito das pessoas economicamente débeis à assistência social. Sabido que, primeiramente, saúde é direito fundamental de todos, afunilando para um Sistema Único de Saúde (SUS), que se põe como dever e competência material de todas as pessoas federadas. A que se agrega o direito igualmente fundamental de ser assistido tão social quanto gratuitamente, no pressuposto da concreta necessidade ou carência dos bens materiais. E quanto à ordem econômico-financeira, de se lembrar que a primeira delas tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. Daí que entre os seus princípios figurem a soberania nacional, a redução das desigualdades regionais e sociais, a busca do pleno emprego, o tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte."

<i>Jorge Abrahão, Coordenador do Instituto Cidades Sustentáveis</i>

<b>Quem tem mais que pague mais</b>

"Nas graves crises, os políticos ganham ou perdem credibilidade em função de sua sensibilidade e tomadas de decisão. Há países que estão numa aposta arriscada, mais preocupados com a economia do que com a vida. EUA, Inglaterra e Brasil se alinham neste grupo. Em todos eles, a crise impactará fortemente a política. Líderes que desdenharam da crise serão responsabilizados pelas mortes que, inevitavelmente, ocorrerão. O apoio à sobrevivência, especialmente dos mais vulneráveis, será outro fator-chave. Resta ainda a decisão sobre de onde virão os recursos para financiar a saúde, e é chegado o momento de fazer com que quem tem mais pague mais, princípio de justiça. As relações entre instituições e sociedade dependerão de como responderão às necessidades do momento. Oxalá o interesse público prevaleça em relação às disputas de poder. A população fortalecerá ou não a democracia em função de sua capacidade de responder à crise."

<i>José Álvaro Moisés, professor de Ciência Política da USP</i>

<b>Isolamento social e do Presidente</b>

"A crise do coronavírus jogou a humanidade diante de um desafio extremo: assegurar a sobrevivência humana em meio a um cenário desconhecido, assustador e mutante. No Brasil, o menosprezo de Jair Bolsonaro pela previsão de mortes criou confusão, desorientou as pessoas e dividiu o País. O presidente abdicou da missão de liderar a Nação para enfrentar a crise. Mas a crise não é apenas de ausência de uma liderança capaz de unir o País para enfrentar a pandemia. Se o isolamento social for quebrado, o número de mortes será exponencial, o isolamento do presidente se agravará e o governo será responsabilizado. A sobrevivência da democracia dependerá da sociedade civil, do Congresso e do STF. Essas instituições sinalizaram a sua posição em defesa da manutenção do isolamento social; quanto à sociedade civil, a sucessão de panelaços apontou o caminho que parte considerável da sociedade começa a trilhar. Isso poderá dar vida nova à oposição."

<i>Eros Grau, jurista e ex-ministro do Supremo
Tribunal Federal</i>

<b>Nesta crise, nada pode ser feito por nós</b>

"A pandemia impacta sobre o todo do qual somos meras partículas. Política é a atuação dos que se ocupam dos assuntos públicos, no quadro na qual estão inseridas relações institucionais e sociais. A suposição de que se possa instalar acirramento entre essas relações é expressiva de ignorância ou de más intenções. Atuação que, na primeira hipótese, conduz a conflitos entre instituições políticas e o todo social. Conflitos que nos levam àquelas palavras de Jesus: Pai, perdoai-os, eles não sabem o que fazem. Na segunda hipótese, expressiva de más intenções. Os graves momentos trazem de volta um poema de Álvaro Moreyra, no qual ele afirma que palavras não dizem nada, melhor é mesmo calar. Nada mesmo a dizer a respeito da atuação de quem se dispõe a agredir o todo a fim de obter vantagens pessoais. Nada pode ser feito por nós, em relação à crise do novo coronavírus, senão rogarmos que Ele nos salve mais uma vez."

<i>Fernando Gabeira, jornalista e ex-deputado federal </i>

<b>Caso da Itália acabou com mea-culpa</b>

"A divisão hoje no Brasil é entre os que querem manter o isolamento social para evitar mortes em massa e os que acham necessário voltar logo à atividade econômica. Não tenho condições ainda de avaliar que tipo de consequência – cada uma dessas posições terá sobre seus defensores. De um lado, o presidente, de outro, governadores e a imprensa. O exemplo da Itália terminou com mea-culpa dos defensores da ideia de que não se pode parar para achatar a curva de crescimento do vírus. O prefeito de Milão confessou seu equívoco em combater o isolamento. No princípio do século, o Brasil viveu a Revolta da Vacina, rebelião popular contra a vacinação obrigatória antivariólica. Era uma reação também às mudanças urbanísticas destinadas a melhorar as condições sanitárias de um Rio imundo e empesteado. As forças em jogo são diferentes e só com um estudo mais rigoroso será possível estabelecer ou descartar o paralelo."

<i>Marco Aurélio Nogueira, professor Titular de
Ciência Política da Unesp</i>

<b>Um estímulo para forças democráticas</b>

"No Brasil o impacto já está em plena manifestação. Sua principal expressão é o isolamento político-institucional de Bolsonaro, que terá como opção tão somente a porta da mobilização social. Poderá ter algum sucesso nisso, mediante o uso das redes sociais, a exploração do desespero popular e a manipulação do irracionalismo de parte de seus eleitores. Mas esse eventual sucesso só será consistente ou se conseguir fixar um vetor no sistema institucional ou se partir para uma aventura autoritária. Um segundo impacto será sobre o movimento democrático. Antes de tudo, porque reforçará o protagonismo do Congresso, das lideranças e dos partidos mais equilibrados. Depois porque estimulará as forças democráticas (liberais, social-democráticas, esquerda moderada) a encontrarem em um eixo programático de articulação. Essa possibilidade de articulação será o principal antídoto contra o acirramento das relações institucionais e sociais."

<i>Priscila Cruz, presidente executiva do Todos pela Educação</i>

<b>Trabalho é não perder ano na Educação</b>

"O Brasil, os brasileiros e as lideranças públicas e privadas estão sendo colocados à prova no combate à covid-19. Na Educação, as próximas semanas, e até meses, devem ser direcionados para a mitigação dos prejuízos e planejamento para recuperar o andamento das políticas direcionadas à melhoria dos resultados de aprendizagem dos alunos brasileiros. Agora, quase todos os alunos estão em casa. Na medida do possível, os efeitos da suspensão das aulas presenciais podem ser minorados (com atividades em casa, como aulas à distância, plataformas de ensino gratuitas, filmes etc.), mas em condições muito desiguais nos lares brasileiros. Fundamental é a preparação de cada rede de ensino para a volta às aulas, com respostas às novas e excepcionais demandas. Governadores, prefeitos e seus secretários têm muito trabalho a ser feito para não perdermos o ano na educação. Mas não contem com o MEC, nenhuma ajuda virá de lá."

<i>Eduardo Mufarej, fundador do movimento RenovaBR</i>

<b>Não existe espaço para polarização</b>

"O maior impacto é que não existe espaço para perda de tempo com polarização e politicagem. A hora é da política séria, objetiva, com letra maiúscula. Estamos diante da maior crise humanitária de nossa geração. A sociedade precisa cobrar que as lideranças do País deixem as disputas por espaço de lado e se concentrem em construir soluções em conjunto. Diante de um vírus, todas as divisões humanas perdem o sentido. Vírus não respeita fronteiras, não distingue raças, não se importa com ideologias. Para um vírus, somos parte de uma só comunidade. E só assim, unidos, sairemos dessa."

<i>Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República</i>

<b>Decisão sobre quarentena é de técnicos </b>

"Os principais líderes políticos, à frente o presidente da República, devem insistir em que o momento é grave, mas sairemos dele. Realismo com esperança. Devem se abster de tirar proveito político-eleitoral da situação. Isso sem abdicar de suas posições e valores. O governo deve agir coordenando. Nada de oposições inconsistentes entre uma política horizontal e outra vertical. Quem decide sobre quarentena e temas correlatos são os técnicos, não os políticos. E, sobretudo, explicar o porquê ao povo. Pedir ajuda e caminhar junto. (foi o que tentei fazer em crise menos grave, a do apagão)."

<i>Leandro Karnal, historiador e escritor</i>

<b>O coronavírus desnudou mais a desigualdade</b>

"A pandemia está em curso e as conclusões podem mudar. Um aumento no número de mortes dará maior lastro político às autoridades que defendiam medidas mais radicais e desgastará o campo contrário. A tradicional polarização esquerda/direita foi matizada pela emersão de um ressentimento social mais nítido. Classes médias e altas discutem o tédio durante a quarentena e as classes baixas se angustiam com a sobrevivência. O vírus desnudou mais a desigualdade no Brasil. Escassez de comida e de empregos somados ao risco de vida e colapso da saúde pública são dinamite social poderosa."

<i>Miro Teixeira, jornalista, advogado e constituinte de 1988</i>

<b>A paz triunfou sobre a raiva. Por enquanto </b>

"Diante de um vírus, nossas radicalizações tornaram-se ridículas e de repente parece que renasceu o sentimento de fraternidade. O Amai-vos uns aos outros fez mais sentido e a agressividade que nos corroía arrefeceu. Autocrítica pelos erros cometidos ou medo? Pouco importa. Sairemos melhores, menos agressivos, mais conscientes da fragilidade de nossas vidas. O super-homem não existe. Somos frágeis. Devemos pedir que compreendam nossas fragilidades e devemos compreender as alheias. A paz triunfou sobre a raiva, entre as pessoas de boa vontade. Pelo menos por enquanto."

<i>Luiz Felipe DAvila, fundador do Centro de Liderança Pública (CLP)</i>

<b>Criou-se um enorme vácuo de liderança</b>

"Na crise, o País busca no presidente direção, grandeza e esperança. A primeira tarefa de um líder é ser hábil comunicador e gestor. É preciso tranquilizar as pessoas e garantir a proteção das coisas que lhes são caras, como saúde, emprego, renda e volta da atividade econômica. É preciso grandeza para se colocar acima das disputas partidárias, conclamando lideranças políticas, empresariais e cívicas a unir esforços. Bolsonaro não demonstrou nenhum desses atributos. Criou-se um vácuo de liderança que será preenchido por novos líderes da política, do setor privado e da sociedade civil."

<i>José Murilo de Carvalho, cientista político e historiador, membro da ABL</i>

<b>Caminho pode ser a ruptura política</b>

"Desde 2015, com anúncio em 2013, já me parecia que o País tinha entrado em uma crise econômica e social que apontava para sua inviabilização como nação capaz de prover vida decente para toda a população. A sensação de fracasso acentua-se hoje com mais duas calamidades, a da eleição de 2018 e a pandemia do coronavírus. Grandes crises exigem liderança nacional sensata, competente, confiável e patriótica. Não é o que temos visto. A se manter o cenário atual, não vejo como se possa evitar um desastre econômico, social e humanitário. É um caminho que pode levar à ruptura política."

<i>Marco Antonio Teixeira, professor da FGV-SP</i>

<b>Covid-19 expôs papel crucial do SUS</b>

"A pandemia chegou feito um tsunami na política brasileira em várias frentes. Uma delas tem a ver com o papel do Estado. Se recuarmos às eleições presidenciais de 2014 e 2018, um dos grandes debates era sobre a qualidade das políticas públicas. Cresceu uma visão minimalista sobre o papel dos governos e acerca da baixa produtividade dos servidores. A covid-19 explicitou a importância do SUS e o papel crucial do Estado na garantia de um mínimo de dignidade para a população carente e desempregados. O pós-coronavírus fixará novas bases do sentido do que é público e do papel do Estado."

As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>

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