Antes de gravar uma música, João Gilberto passava um bom tempo com o violão descobrindo caminhos harmônicos e testando andamentos até considerar que havia chegado ao melhor resultado possível. Foi assim, por exemplo, com Eu Sambo Mesmo. Ele interpretava desde os anos 1960 a canção de Janet de Almeida, sucesso do grupo vocal Anjos do Inferno em 1946. Somente em 1991 o cantor considerou que sua versão poderia ser incluída em disco.
Apenas pessoas do círculo próximo de João, conhecido pelo perfeccionismo, puderam ver de perto como ele burilava uma música. Mas um material inédito atribuído ao artista, colocado parcialmente na internet, mostra em pleno funcionamento a usina de criação do cantor e compositor que revolucionou a música brasileira, destaca o jornal <b>O Estado de S. Paulo</b>.
Uma fita gravada há mais de 50 anos registrou um ensaio caseiro de João e, nas últimas 48 horas, alguns trechos de músicas foram parar no YouTube. O material foi digitalizado pelo pesquisador musical Manoel Filho. Especialistas em música brasileira não têm dúvida de que se trata da voz e do violão do cantor.
O produtor Heron Coelho, que trabalhou com Miúcha, ex-mulher de João, guarda material de arquivo de ambos. Ele entregou a Manoel fitas cassete sem identificação. O pesquisador colocou para rodar a que tinha gravações do cantor e se surpreendeu ao ouvir músicas inéditas na voz do artista.
Em razão do repertório, Manoel acredita que o registro possa ser de 1968, quando João morava nos Estados Unidos. A fita estava tão danificada, afirma o pesquisador, que se desmanchou após a digitalização.
Quando o registro foi feito, João já era um grande nome da música mundial. Depois de participar do histórico show de bossa nova em Nova York, em 1962, ele foi morar nos Estados Unidos. No fim dos anos 1960, ele já estava casado com Miúcha, com quem teve a filha Bebel.
Depois de transcrever a fita, Manoel tirou alguns ruídos de fundo por meio de um programa de edição de áudio. No canal que mantém no YouTube, o TonicoManel, ele publicou apenas trechos de 30 segundos de seis faixas, com receio de infringir direitos autorais. Uma delas, no entanto, deixou na íntegra. Quem Dera, de Sidney Miller, foi lançada pelo MPB-4 na primeira Bienal do Samba, em 1968.
É possível ouvir um metrônomo marcando o andamento. Sem saber a letra completa, cantando alguns lá-lá-lás, João adianta e atrasa o tempo da música. Ele jamais gravaria uma composição de Sidney, que morreu em 1980, aos 35 anos.
Apesar de o material estar em partes no YouTube, o jornal obteve os áudios na íntegra com exclusividade e os encaminhou a especialistas e pesquisadores de música brasileira. Uma das joias é a versão de Ela Desatinou, de Chico Buarque, com mais de cinco minutos. João interpreta a faixa com Miúcha, irmã do compositor. A voz dela aparece primeiro, acompanhada pelo violão cheio de bossa.
O clima familiar também está presente em Largo da Lapa, que aparece na fita em duas versões e nunca foi gravada por João. Ainda criança, Bebel canta uma delas com o pai.
O jornalista e escritor Ruy Castro, autor do livro Chega de Saudade, que conta a história da bossa nova, ouviu o material. "Escutar essas gravações é como estar na sala do apartamento de João Gilberto, ouvindo-o explorar as possibilidades de uma canção. Sabendo que não está gravando para valer, ele experimenta diferentes andamentos, canta a capela, reduz a letra a um recitativo, testa o fôlego emendando versos, faz misérias", afirma Ruy, lamentando que João não tenha gravado em disco Largo da Lapa.
Autor de um livro sobre João Gilberto, o musicólogo e jornalista Zuza Homem de Mello acredita que a fita tenha sido gravada no fim dos anos 1960, quando João deixou os Estados Unidos e foi morar no México. Uma das faixas, Eclipse, do cubano Ernesto Lecuona, está no disco que o cantor gravou no país em 1970. "É ótimo que isso esteja no YouTube para as pessoas aproveitarem e verem como João preparava uma música. É o que ele fez a vida toda."
Professor da USP, autor de Bim Bom: A Contradição Sem Conflitos de João Gilberto e organizador do livro João Gilberto, Walter Garcia conta que a fita se assemelha a cadernos de um artista plástico ou diários de um escritor. "Para a cultura brasileira, sobretudo neste momento, a importância do material é imensa. João Gilberto foi um daqueles criadores que trabalharam muito até considerar uma canção pronta para o teatro ou o estúdio. Ao permitirem que escutemos o metrônomo, a letra incompleta, a presença da filha pequena, esses registros indicam um processo que poderia durar anos, décadas ou nem mesmo se completar."
O produtor musical Arnaldo DeSouteiro, que conviveu com João por décadas, conta que o cantor não tinha o costume de gravar ensaios. "João tinha uma memória prodigiosa. Provavelmente esta fita foi gravada por Miúcha", afirma Arnaldo, que destaca a qualidade da interpretação de Ela Desatinou.
Autor de um musical sobre Sidney Miller, o jornalista e pesquisador Hugo Sukman ressalta que João prestava atenção aos artistas que estavam surgindo. "Em plena deflagração do tropicalismo, João Gilberto estava de ouvidos interessados também em seu oposto, a chamada MPB. E através de Chico Buarque e Sidney Miller, os dois mais opostos possíveis do tropicalismo", justifica Sukman.
Manoel conta que precisa ouvir outras fitas que estão com Heron. "Acredito que deve vir muito mais coisa por aí. Não tenho intenção comercial, só quero preservar essa memória." O baú de João está aberto.
<b>As faixas da fita</b>
<b>- Quem Dera</b>
Samba do compositor Sidney Miller, um dos preferidos de Nara Leão, foi lançado em 1968. João nunca gravou a música
<b>- Ela Desatinou</b>
Miúcha, que era mulher de João Gilberto, canta com ele a música do irmão Chico Buarque, também lançada em 1968
<b>- Largo da Lapa</b>
Na fita, a música de Wilson Batista e Marino Pinto aparece duas vezes, em versões distintas. Em uma delas, Bebel Gilberto, ainda criança, canta com o pai
<b>- Fotografia</b>
João só gravaria a música de Tom Jobim oficialmente em um disco ao vivo de 1994
<b>- Eclipse</b>
Na mesma época da gravação da fita, João incluiu a música em disco lançado em 1970
<b>- Pica-Pau</b>
A marcha de Ary Barroso era cantada por João desde os anos 1960 e entrou em um Blu-Ray que saiu ano passado, com o registro de um show no Japão
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>