O tédio, a mecanicidade da vida, o absurdo das convenções sociais, uma permanente sensação de desorientação frente a um mundo que não justifica seu sentido. O existencialismo fez ninho na cultura francesa nos anos 1940, e legou obras fundamentais da literatura. O Estrangeiro, de Albert Camus, é uma delas.
A história de Meursault, sujeito incapaz de demonstrar laços afetivos e emoções no seu dia a dia, virou referência do existencialismo, traduzido para mais de 40 idiomas e levado ao cinema por Luchino Visconti.
Agora, 72 anos após sua publicação, O Estrangeiro enfrentou sua transposição para os quadrinhos em edição da Cia. das Letras. A versão do quadrinista Jacques Ferrandez, 59 anos, argelino como o autor, Albert Camus, tem certa dose de “modernização”.
O assassinato do árabe, centro crucial da história, é realizado a tiros, não mais a facadas, como no original. Há citação de personagens que não se relacionam. O autor falou ao jornal O Estado de S. Paulo sobre sua versão.
Vivemos um momento muito fértil para as adaptações de obras literárias para os quadrinhos. Há Kafka, Proust, Molière. Qual foi o objetivo de sua adaptação de O Estrangeiro?
Tenho uma ligação forte com a Argélia. Eu nasci lá e, mesmo tendo deixado o país muito cedo, a memória familiar daquele que eu me tornei está impregnada desse passado argelino. Além do mais, eu trabalhei muito na Argélia. Dediquei 25 anos aos Carnets dOrient. Ao longo desse trabalho, Camus jamais esteve muito longe de mim e eu o tornei minha referência, até que passei naturalmente à ilustração de um de seus contos, LHôte (O Hóspede), uma novela extraída do LExil et le Royaume, de 1957, que apareceu em 2009. Desejei adaptar essa obra maior de Albert Camus da forma mais fiel possível ao romance. Eu também procurei abarcar todo o mistério. Meursault é, enfim, um personagem tremendamente enigmático. E é isso que foi o mais apaixonante nessa tarefa.
Na minha avaliação, existem umas conotações homoeróticas na sua interpretação de O Estrangeiro. E essa é sempre uma assertiva polêmica. Por que você aceita essa interpretação?
No fim, nós não sabemos porque Meursault mata o árabe. Ele vai, volta, retorna ao local. O árabe não o agride diretamente. “Foi por causa do sol”, dirá Meursault. Nunca haverá uma explicação e, quando o juiz pergunta por que ele atirou outras quatro vezes após a primeira bala, ele não sabe o que responder. Reveja atentamente a cena da morte na praia e você verá que há uma forte carga sensual que é empregada pelas próprias palavras de Camus. Mas eu seria pretensioso de arriscar uma interpretação que Camus não deu. É todo o enigma do romance. No final, o assassino e sua vítima se parecem, eu os desenhei jovens e belos os dois. Um é branco e loiro, o outro é moreno e queimado de sol. Essa é a única diferença visível. Há um efeito de espelho. Para mim, o árabe é um pouco o duplo de Meursault. Podemos pensar que eles são ambos estrangeiros um para o outro. O livro conta também um pouco da vida das comunidades na Argélia naquele momento. Pode ser, talvez e simplesmente, sobre as margens de certo Mediterrâneo trágico, uma rixa entre homens jovens de sangue quente que confundem honra e virilidade. Deveríamos eliminar a interpretação subliminar de amor-ódio que Camus imprime, após os quatro tiros nesse homem já inanimado sobre a terra, num cerimonial solar do tipo “eu te amo, eu te mato”?
Você também coloca Jean-Paul Sartre como um personagem ocasional, um repórter que aparece no julgamento de Meursault com a face de Sartre. O que pretendeu com essa menção?
Eu quis fazer alusão à rivalidade entre Sartre e Camus. Existiu uma querela sobre o Homem revoltado com os sartrianos, após e durante a guerra da Argélia, quando o mundo intelectual majoritariamente partidário de Sartre no combate anticolonialista reprovava Camus por sua recusa de se engajar nesse sentido. Foi um sartriano, Jean-Jacques Brochier, que no gibi eu também cito dando seus traços a um personagem, O Procurador, que escreveu depois da morte de Camus um livro crítico contra ele, Camus Philosophe pour Classes Terminales.
Sua intimidade com a capital argelina é evidente na ambientação: os bondes, os ônibus, as lâmpadas a óleo, a vida cotidiana. Considera que sua infância no mesmo bairro de Camus em Argel foi importante para compreender melhor o mistério de Meursault?
Nasci na cidade, mas meus pais se mudaram quando eu ainda era bebê. Mas eu a desenhei muito em diferentes períodos dos meus Carnets dOrient, antes de percorrê-la eu mesmo por muitos anos. Eu posso compreender a aparente frieza e indiferença de Meursault. Argel é uma vila mediterrânea povoada de diferentes tipos latinos e árabe-muçulmanos. São de sociedades em que os sentimentos são sempre exteriorizados. O jovem Camus talvez tenha compreendido em sua infância a parte engraçada de tudo isso. Seu Meursault é alguém que não sabe mentir e que não joga o jogo das convenções sociais e das conveniências, o que o torna mais estranho nessa sociedade mediterrânea extremamente normal.
Meursault e seus amigos de subúrbio são um tipo de metáfora que se pode aplicar à Paris de hoje. Posso sentir um esforço seu pela modernização do tema. Estou errado?
Há uma dimensão universal em O Estrangeiro. Não é só acaso que o torna tão lido até hoje. O que disse Camus sobre a condição humana é de uma grande modernidade. Camus escreveu O Estrangeiro à idade de 27 ou 28 anos, o que talvez explique que o livro fale tão bem à juventude do mundo todo. Os temas caros a Camus são, aqui, o mar, o sol, mas também o absurdo de uma vida que Camus, doente de tuberculose, sabe que será breve. É um romance que nós nunca ficamos exaustos de ler, que nos reporta àquela época ou ao local onde ele o escreveu, a Argélia colonial, da maneira mais universal.