Mundo das Palavras

O quadro de Vellame

“E sobre a mesa restou um garfo no qual havia alguns fios de macarrão enrolados”. Esta frase extraída, assim, da narrativa a que pertence parece, à primeira vista, irrelevante. Apenas parece porque ela foi inserida com muita habilidade por Gay Talese no seu texto sobre os mafiosos norte-americanos, publicado com o título de “Honrados Mafiosos”. O texto composto somente com dados extraídos da realidade, é considerado, hoje, uma obra-prima da narrativa não ficcional.


 


De fato, a frase nada tinha de irrelevante. No contexto do texto de Talese, ela retratou, com felicidade, a natureza de um sentimento difícil de ser expresso com palavras. Aquele com o qual um grupo de mafiosos abandonou sua refeição num restaurante, ao perceber a aproximação da polícia. O sentimento de ansiedade, capaz de fazer alguém largar sobre a mesa um garfo já preparado para conduzir à boca o seu alimento.


 


Detalhes como este enriquecem qualquer texto, se bem empregados. Mas, infelizmente, com freqüência, eles se perdem na memória de quem escreve textos não ficcionais. Em qualquer tema que se queira explorar, há inúmeros destes detalhes, à espera de salvação, antes de sumirem no esquecimento coletivo. Por exemplo, um memorialista de São Paulo dos anos de 1960 que queira recriar o clima no qual viveram em São Paulo os artistas ligados ao movimento tropicalista. À espera dele estão os inúmeros detalhes do apartamento, na Avenida São Luís, no qual vivia um dos líderes deste movimento: Caetano Veloso.


 


Quem freqüentou aquele apartamento guarda em sua lembrança como o então jovem Caetano o decorou. O apartamento tinha duas salas amplas. E nelas se destacava um conjunto de objetos, intencionalmente desarmonioso, porque correspondia à geléia geral de influências culturais da qual resulta a originalidade brasileira, segundo os tropicalistas. O assento de um sofá de plástico, inflável, típico da arte plástica de vanguarda, da época, acolhia as folgadas batas indianas usada por Caetano quando se sentava nele.


 


Outra peça de Arte de Vanguarda sobressaía numa das paredes do apartamento. Um quadro. Nele, o artista havia empregado, com talento, a técnica da colagem, muito valorizada, na época. Sensíveis traços, feitos com as tintas usualmente utilizadas pelos pintores, eram rodeados e, às vezes, recobertos, por roldanas de relógio e pequenos tubos de vidros, com os quais os laboratórios, comercializaram, naqueles anos, os primeiros anticoncepcionais. Era o dia a dia tratado esteticamente.


 


Só este quadro já garante ao memorialista uma rica vereda pela qual ele pode avançar. O quadro pertencia ao artista Humberto Vellame, um baiano, como Caetano, envolvido, em São Paulo com a produção cultural mais avançada da época. Na mixórdia de influências culturais retratada naquela discrepância de objetos usados na (des)arrumação da moradia paulistana de Caetano, o trabalho de Vellame introduzia a Bahia.


 


Não, porém, a Bahia folclórica do azeite de dendê. Mas, a Bahia cosmopolita, globalizada, da qual proveio o próprio Caetano.


 


Oswaldo Coimbra é jornalista e pós-doutor em Jornalismo pela ECA/USP

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