Quando iniciava a escrita daquele que seria um dos melhores romances de 2016, Meia-Noite e Vinte (Companhia das Letras), Daniel Galera exercitava a escrita de apenas um narrador, como está habituado a fazer. Aos poucos, porém, as vozes de seus quatro personagens acabaram se impondo com idêntica força, o que obrigou Galera a mudar de tática – ele, como grande parte dos escritores, não consegue ter total domínio dos destinos da trama como erroneamente pensa ter.
“Logo descobri que o romance não seria muito longo, o que permitiria um trabalho mais cuidadoso e minucioso com aqueles personagens”, conta Galera, que começou a escrita de Meia-Noite e Vinte no início de 2014, quando Porto Alegre, cidade onde vive há alguns anos, foi tomada por uma insuportável onda de calor, que tornava quente a água das torneiras.
A alta temperatura pareceu também fomentar complicações, como a greve de transportes urbanos que paralisou a metrópole e a cada vez mais visível situação crítica de moradores de rua, vistos com mais frequência revirando latas de lixo. Um verão, portanto, que a maioria dos porto-alegrenses gostaria de esquecer. Aquele clima de final de mundo fez com que o escritor se lembrasse do apocalipse preconizado na virada do milênio, com a chegada do ano 2000. É em meio a um abafamento semelhante que se passa o romance. São três amigos que voltam a se encontrar por conta da morte de um outro.
A bióloga Aurora, o artista/publicitário Antero e o jornalista Emiliano voltam a se ver no enterro de Andrey Dukelsky, Duque, o escritor. Duas décadas antes, no fim dos anos 1990, eles viviam carregados de projetos e agitaram a então insípida internet com Orangotango, um fanzine digital que se tornou cultuado em todo o Brasil. gora, diante da falta daquele amigo que prometia ser um estrondoso sucesso literário, tanto de público como de crítica, eles são obrigados a encarar suas promessas não cumpridas.
“Vivíamos com muitos planos, no final dos 1990, mas, com a tragédia do 11 de Setembro, em 2001, a instabilidade só vem aumentando”, comenta Galera que, curiosamente, há alguns anos, esteve também à frente de uma newsletter cultural, Cardosonline, que definiu o perfil e os desejos de uma geração de jovens. No romance, porém, interessa mais saber o destino traçado por aqueles personagens que, como muito acontece, guiaram sua trajetória para um rumo distinto daquele sonhado. Os três, de alguma forma, se renderam ao sistema: inicialmente artista, Antero enriqueceu ao enveredar pelo mundo publicitário, enquanto Emiliano se tornou jornalista de uma imprensa mais estável e Aurora, antes com sonhos literários, virou uma pesquisadora obrigada a viver as picuinhas do meio universitário, movido mais por interesses pessoais do que sociais.
A morte de Duque, portanto, não apenas os reúne fisicamente, mas provoca ainda um confronto de realizações inexistentes e que os obriga a passar a limpo suas frustrações, ainda que internamente. Afinal, entre todos, Duque parecia ser o único a ter resistido em seus ideais, o que o aproxima do próprio Daniel Galera. “Eu também, como ele, busquei manter uma individualidade mesmo com a profusão de redes sociais. Sou de uma geração que acreditava no nascimento de uma nova literatura, com textos mais curtos, fragmentados, e marcados por hipermídia”, conta ele, que se vê, no entanto, diante de uma realidade diferente – o que se pode chamar de literatura tradicional persiste e ainda atrai leitores e prêmios, enquanto a escrita difundida no meio digital se esvanece rapidamente, graças, muitas vezes, à falta de profundidade e a um estilo pouco ou nada artístico.
É curioso como a sobrevivência dessa voz literária mais tradicional é mostrada no romance, por meio de uma tentativa de os personagens ressuscitarem seus projetos juvenis – Antero, por exemplo, acaba se envolvendo em uma manifestação de rua e ali, entre gritos de protestos, se descobre ainda com a centelha de um guerrilheiro. “Havia construído uma vida boa para mim, liderava uma empresa bem-sucedida e tinha um filho para criar”, diz Antero. “O mundo, eu pensava, não precisava ser salvo, e por isso seria salvo justamente por aquelas pessoas que não acreditavam que ele precisava ser salvo.”
Em seu quinto romance, Daniel Galera exercita novamente uma escrita fluente, que não perde o prumo mesmo com digressões ou revisões de perspectivas. E revela nova habilidade para escrever sob diferentes vozes. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.