Na juventude, o pernambucano Raimundo Carrero, atraído pelos livros que o irmão deixara na loja do pai, em Salgueiro, decidiu que não seria mais um escritor regionalista a contar o drama da seca. Não iria atrás de sertanejos à deriva. Muito menos repetiria Graciliano. Estava decidido a fazer carreira sem imitar ninguém.
Tomou coragem, escreveu um romance e procurou Ariano Suassuna, que o recebeu em sua casa, prometendo ler os originais do livro. Com o autor de A Pedra do Reino, morto em julho do ano passado, Carrero acabou aprendendo uma lição: literatura se faz com metáforas e erudição. Isso o salvou de escrever um daqueles livros que os americanos veneram, relatos realistas de quem superou a doença e enganou a morte.
Recuperado de um acidente vascular cerebral (AVC), que sofreu em outubro de 2010, três meses após receber o grande prêmio São Paulo de Literatura pelo romance A Minha Alma É Irmã de Deus, Carrero decidiu contar sua experiência de superação, elegendo uma terceira pessoa, chamada de Escritor, em O Senhor Agora Vai Mudar de Corpo.
No livro, repleto de metáforas, Carrero, que ficou com o lado esquerdo do corpo comprometido, conta como as transformações físicas provocadas pelo AVC alteraram sua percepção e o obrigaram a rever a história pessoal. Sua obsessão passou a ser o corpo, essa entidade concreta e ao mesmo tempo etérea que comanda a existência – e conduz os seres a uma trágica metamorfose.
Russos
No caso de Carrero, o agente dessa transformação foi uma cuidadora de tipo saturnino, que, sem risos, disse a ele, que mal conseguia ficar em pé: “O senhor agora vai mudar de corpo”. Simples assim, como se Carrero fosse Clark Kent e pudesse se transformar em Super-homem por milagre.
O “poço fundo e escuro” da morte então se abriu, segundo ele, que, atônito, perguntou: “Que corpo?”. Seria o da solitária e errante Camila, de A Minha Alma É Irmã de Deus, que queria ser santa e acabou na sarjeta, dormindo entre detritos? Quase isso.
Num dos capítulos mais tocantes de O Senhor Agora Vai Mudar de Corpo, ele chega a dizer que tem nojo do novo corpo que o AVC lhe deu, mais ou menos como Ivan Ilitch a caminho do banheiro, sustentado pelo fiel criado Guerássim, cena evocada por Carrero para dizer que o personagem de Tolstoi se “encastelou” em sua vida.
Fiel leitor dos russos, o escritor também cita Dostoievski, mais particularmente Ivan Karamazov, numa passagem em que seu protagonista ouve uma voz que julga ser a do Cristo, para logo em seguida descartar esse milagre, do qual não se sente merecedor. Mas aconteceu. Carrero voltou à vida como o velho Carrero, falador, engraçado, doce e com o mesmo talento.
Cristo
Ele revela que já começou a trabalhar num novo romance, justamente sobre Jesus. Não o Jesus histórico de Saramago, mas o Redentor de Kazantzakis, que volta ao Calvário para cumprir sua missão, após ser enganado pelo demônio, disfarçado de anjo, que o convence a renunciar à cruz. Na UTI, Carrero descobriu que esse demônio anda mais próximo do que supõem os mortais.
Parafraseando Sartre com uma ligeira mudança, o pernambucano diz que “o inferno somos nós mesmos, que temos de passar por um julgamento na hora da morte”. Após enfrentar um juiz que desconhece a palavra misericórdia – o próprio escritor -, Carrero decidiu que não poderia contar essa história na primeira pessoa. “Não era eu nem tampouco outro, não queria despertar compaixão nem dor demais, com medo de transformar esse drama num bolero.”
Carrero escreveu três versões do livro sobre sua doença. Nenhuma delas o satisfez. Na última tentativa conseguiu encontrar o tom certo, dividindo a obra em cenas em que o corpo comanda a ação. O personagem do Escritor, que desde criança acredita que será assassinado, delira com uma cena circense logo no prólogo, quando vê do terceiro andar uma trupe perseguindo um anão. Esfaqueado no peito, ninguém socorre a vítima, rodeada por outros quatro: um gordo, um magro, um velho e uma mulher grávida.
Epopeia
Da mesma forma que surgem, essas sombras desaparecem, e novas ameaças surgem nas intermináveis noites desse ser que, paralisado, ainda enfrenta uma cegueira temporária. Temendo que ela volte, o Escritor mantém os olhos bem abertos em noites indormidas, acompanhando o movimento de aranhas pelo teto.
É uma epopeia, mas a literatura de cordel também repete a estrutura do poema épico, lembra Carrero, que integrou o movimento Armorial de Suassuna, citado ao lado de Clarice Lispector, para quem o corpo era “a única certeza que nos acompanha, desde o nascimento até a morte”.
Carrero deve sua ousadia fabular a Ariano, reconhece. “O folclore, para ele, funcionava como metáfora e, ao contrário do que dizem, Ariano não era um radical regionalista, mas um homem aberto.” Além dele desfilam pelo livro tipos populares, como o jornalista Mojica, travesti do Grupo dos Desesperados, formado por mendigos e miseráveis. “Gosto que o leitor receba o livro como um golpe”, justifica. “Se ele pensar antes, não sente.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.