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O vice queria ser rei

Vice parte da juventude de Dick Cheney para retratá-lo como um estroina que bebia demais e não tinha coisa que prestasse na cabeça. Sua salvação, se o termo cabe, deve-se à então noiva e depois esposa, Lynne Vincent. Esta Lady Macbeth dos tempos modernos um dia encurrala o noivo e lhe pergunta se deseja ser alguém na vida ou estava conformado em ser um bêbado qualquer. Esse seria o impulso psicológico que faltava para Cheney entrar para a política e buscar o destaque, sem qualquer outra consideração que não o sucesso. É uma hipótese, claro, mas faz sentido no contexto de um país que coloca o êxito como objetivo supremo e tem na palavra “loser” (perdedor) a sua pior ofensa.

Cheney decide ser um vencedor. E, como tem em Rumsfeld um excelente mestre, aprende a escolher os caminhos certos e trilhá-lo com o foco permanente na acumulação máxima de poder. Dessa maneira, seguimos as peripécias de Cheney rumo ao topo, e à espera de uma grande oportunidade.

Esta surge quando Bush o convida para vice de sua chapa. A princípio, Cheney não se mostra disposto. Considera a vice-presidência cargo decorativo, vizinho ao poder mas sem exercê-lo de fato. A não ser…

A não ser que consiga convencer o candidato a conceder algumas alterações nos atributos do cargo. Que tal, por exemplo, dar ao vice o comando das Forças Armadas e da diplomacia, incluindo-se aí, é claro, a CIA e todas as operações, legais ou ilegais, realizadas no exterior? Mas será algum candidato a presidente tolo o suficiente para abdicar parte considerável do poder que terá caso eleito e transferi-la para seu companheiro de chapa? Na interpretação do filme, esse candidato se chama George W. Bush. Cheney teria aceitado concorrer, mesmo se Bush negasse seu pedido? Não se sabe; tudo é especulação. Mas, como o jogo do poder é parecido com o pôquer, se Cheney estava blefando, ganhou aquela mão, mesmo sem ter ótimas cartas.

Do ponto de vista cinematográfico, esta é uma das sequências chave do filme. O pôquer entre Bush e Cheney, no qual se disputam parcelas de um futuro e hipotético poder. Talvez se possa criticar o jeito um tanto caricato com que Bush é interpretado por Sam Rockwell. Seu jeito simplório, tosco mesmo, diante de um aliado/adversário a manejar como mestre as artes da astúcia política. Mas, como se sabe, tanto Bush como Trump e outros políticos em outras latitudes fazem de sua falta de refinamento e limitação cultural trunfos para ganhar o voto do “homem médio”, ressentido, anti-intelectual e mais propenso a seguir palavras de ordens que pensamentos complexos.

De qualquer forma, foi assim que Bush chegou ao poder – levando com ele Cheney. Quis o destino que a dupla se defrontasse com o grande desafio do 11 de setembro de 2001, o ataque da Al-Qaeda aos Estados Unidos com a destruição das Torres Gêmeas em Nova York. Foi um fato que mudou a história da humanidade, para pior provavelmente, logo no alvorecer do século 21.

De acordo com o filme, Cheney teria assumido papel protagonista em uma situação de urgência bem acima da capacidade de reação de Bush Jr. Teria sido o vice, então, o promotor da implacável caçada à Al-Qaeda e ao seu líder máximo, Osama Bin Laden (que seria encontrado e morto apenas no governo Obama). Teria saído de Cheney a ideia da invasão do Iraque e a deposição (e depois execução) de Saddam Hussein, a pretexto da existência de armas de destruição em massa. Como se sabe, essas armas jamais seriam encontradas. Mas, então, a invasão do Iraque, riquíssimo em petróleo, já era fato consumado.

Como filme, Vice é construído sobre essas manobras de bastidores, em que o poder se move em direção a áreas de interesse, usando pretextos nem sempre críveis e poucas vezes éticos. Daí o charme oculto desses manipuladores que, sem ocupar a ribalta, são os que de fato conduzem o jogo.

Mesmo nas democracias, já aprendemos, às vezes com muito sofrimento, o poder mantém suas zonas de sombra. Nem tudo vem a público, ou vem tarde demais, ou de forma incompleta, a pretexto da “segurança nacional”. Sob a forma cômica mordaz, Vice reafirma essa opacidade do poder e nos traz alguma coisa a mais. Em tom sarcástico, insinua os limites da democracia e sua ilusão de transparência, mesmo em países de instituições sólidas como os Estados Unidos.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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