Variedades

Obra do poeta Murilo Mendes ganha reedição completa

Alguns poetas vieram ao mundo para desmontar o discurso dualista e promover a “aliança dos extremos”. Na Itália, o caso mais conhecido é o do poeta e cineasta bolonhês Pier Paolo Pasolini (1922-1975), morto no mesmo ano do brasileiro Murilo Mendes (1901-1975), que, por coincidência, viveu anos na Itália (ele se estabeleceu em Roma em 1957). Pasolini era marxista cristão, o que, aparentemente, soa como contradição. Murilo Mendes era modernista e católico, convertido em 1934, mesmo ano da morte de seu amigo Ismael Nery, pintor surrealista com o qual conviveu desde 1921. Atraído simultaneamente pela força da materialidade e o chamado espiritual, Mendes foi um caso singular dentro da modernidade brasileira, mas seus livros, fora de catálogo, são pouco lidos pelos jovens. Corrigindo essa falha, a Cosac Naify está relançado a obra completa do poeta, começando por quatro títulos que chegam às livrarias neste fim de semana.

Coordenada pelo editor Milton Ohata com a colaboração de dois especialistas na obra do poeta, a coleção ainda não está totalmente montada. Ela começa com quatro títulos: Antologia Poética, compilação de Julio Castañon Guimarães e Murilo Marcondes de Moura; Poemas (1930), primeiro livro de Mendes; A Idade do Serrote (1968), livro de memórias, e a última obra publicada em vida, Convergência (1970). No próximo ano, anuncia Marcondes de Moura, professor de Literatura da USP, serão lançados outros quatro títulos: As Metamorfoses, Tempo Espanhol, Poliedro e Retratos-Relâmpago.

Marcondes de Moura é uma autoridade em modernidade literária brasileira. Já escreveu sobre Drummond, Manuel Bandeira e todos os poetas que importam nesse segmento. Para a edição da Antologia Poética, além de organizar o volume com Castañon Guimarães, escreveu o posfácio As Passagens do Poeta (do qual reproduzimos um trecho nesta página). É dele a oportuna observação de que a conversão religiosa de Murilo Mendes não afastou o poeta dos procedimentos da vanguarda modernista – a primeira poesia do escritor mineiro, dos anos 1920, é caracterizada pela linguagem coloquial (“desabusada”, segundo Marcondes de Moura) e um poder paródico que não poupa instituições nem a história do Brasil, recontada com corrosivo sarcasmo.

Na antologia poética agora lançada, quatro poemas contam essa história de forma divertida, começando no ano zero do Brasil. No poema 1500, um índio vê um português de tamancos saindo de uma fragata e “despede uma flecha no velho”, não sem antes dizer: “Sai, azar!”. No poema Itararé, um homem, tomado de delírio patriótico, decide embarcar para Itararé (a “batalha que não houve”), mas, no meio do caminho, entra num botequim, toma “um bruto pifão” e acorda major. Quando a editora José Olympio publicou os títulos de Murilo Mendes nos anos 1950, o próprio poeta suprimiu do projeto História do Brasil, por julgá-lo “demasiadamente superficial”, comprometendo “o conjunto lírico da obra”. Corrigiu poemas, condenou alguns ao esquecimento e revisou outros tantos, como faria mais tarde a italiana Luciana Steggagno Picchio (com inúmeros erros, segundo Marcondes de Moura) na antologia Melhores Poemas de Murilo Mendes (Editora Global, 1994).

A antologia organizada por Marcondes de Moura e Castañon Guimarães inclui História do Brasil (publicado em 1933). E ele explica a razão: “É um livro demolidor, de Cabral à Revolução de 1930, uma história não oficial do Brasil, no dizer de Aníbal Machado, e que está próximo de Brejo das Almas, de Drummond, também um sardônico ajuste de contas com o Brasil”. Drummond, outro mineiro modernista, publicou o livro quando trocou Belo Horizonte pelo Rio, em 1934, não poupando nem sua triste figura – há lances de crítica autofágica muito próximos à autodestruição provinciana de Mendes, transformado num crítico cosmopolita e colecionador de arte (leia sobre a mostra de sua coleção em Juiz de Fora ao lado).

Em 1959, quando já se encontrava em Roma e sua obra poética estava prestes a ser reeditada em um só volume, Murilo Mendes escreveu um texto para o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (reproduzido na atual edição de Antologia Poética) em que classifica de “decisiva” sua mudança de Juiz de Fora para o Rio, reconhecendo em Drummond uma grande influência. Se, na mocidade, suas leituras de Baudelaire, Rimbaud e Apollinaire o conduziram à estrada do modernismo dionisíaco, na maturidade, após a morte de Ismael Nery, os autores que ocuparam sua cabeceira passaram a ser católicos como o jesuíta Teilhard de Chardin, François Mauriac e Georges Bernanos. Sem perder de vista a tradição, ele se preocupou “com a aproximação de elementos contrários, a aliança dos extremos, pelo que dispus muitas vezes o poema como um agente capaz de manifestar dialeticamente essa conciliação, produzindo choques pelo contato da ideia e do objeto díspares, do raro e do cotidiano”.

Usando palavras extraídas tanto da Bíblia como dos jornais, Mendes procurava mostrar “que o social não se opõe ao religioso”, mais ou menos como faz hoje a poeta mineira Adélia Prado, igualmente guiada pela fé religiosa. A cultura do poeta mineiro durante anos cresceu vinculada à literatura, ao jazz, aos músicos inovadores (Schönberg, Stravinski, Alban Berg). Só depois dos 30 anos, com a morte de Ismael Nery, é que passou a devorar obras filosóficas e religiosas (Platão e os livros sagrados da Índia, em particular), orientado por teólogos beneditinos. A exemplo de Pasolini, dedicou-se em particular às epístolas de São Paulo (o cineasta italiano deixou um roteiro não filmado que fazia um aggiornamento da sua conversão) e, a seu modo, tentou uma terceira via ao pesquisar novas linguagens, acreditando que elas não se opunham à iluminação. “Em outras palavras: não creio que a afetividade possa desaparecer do campo da poesia.”

O livro que escreveu logo após sua conversão, Tempo e Eternidade (1935), em parceria com Jorge de Lima, descontadas as diferenças estilíticas, é, segundo o professor Marcondes de Moura, “o único em que existe certo proselitismo religioso, mas, mesmo assim, é precioso matizar, pois a religião já estava presente em O Visionário, por exemplo, antes da morte de Ismael Nery”. E também na maturidade, lembrando o organizador do “longo texto evangélico Judas Isgorogotes, escrito nos anos 1950”. O organizador prepara agora a edição de Convergência, livro que provocou polêmica pela adesão de Mendes à poesia concreta. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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