Variedades

Obra expressa contradições da nação brasileira

Trinta e 5 anos de morte. Uma efeméride. Mas serve para mostrar que Glauber Rocha (1939-1981) não virou totem, peça de museu, verbete de enciclopédia ou mera referência histórica. Sua obra continua atual e atuante na cultura brasileira. Tem dúvida? Reveja Terra em Transe (1967) e diga se não tem nada a ver com o Brasil atual.

Claro, os tempos eram outros. Mas o Brasil muda e não muda. O filme foi feito na ressaca do golpe de 1964, quando um movimento civil e militar depôs o presidente João Goulart. Jango fora eleito na chapa de Jânio Quadros e assumiu com a renúncia deste. Na época, os candidatos a presidente e a vice recebiam votações separadas, tanto assim que Jânio e Jango pertenciam a partidos diferentes. Ao assumir, Jango tentou uma presidência ousada e de cunho social. Foi deposto a pretexto de estar aliado aos comunistas. Aproveitou-se a paranoia anticomunista da Guerra Fria para derrubá-lo. Terra em Transe reflete sobre a incapacidade das forças populares em defender o presidente. E, em linguagem inovadora e precursora do tropicalismo, toca em alguns alicerces da “democracia à brasileira”, feita de populismo, alianças entre poderosos, a presença do capital estrangeiro, a manipulação da classe média temerosa, etc. Terra em Transe diz muito sobre o Brasil de hoje. E a fala do “tirano civilizado”, vivido por Paulo Autran, é de antologia.

Glauber foi o nome mais importante do Cinema Novo, seu guru e profeta. Este era um agrupamento de jovens cineastas, todos com preocupação política e social, algumas influências em comum (como o neorrealismo italiano), mas donos de estilos diferentes. Glauber era o mais barroco. Em seu caldeirão de referências incluía de Eisenstein a Buñuel, passando pela literatura de cordel, a música de Villa-Lobos e os grandes mestres da literatura brasileira, como Euclides da Cunha e Guimarães Rosa. Tomava esses elementos e, como bom alquimista, os transmutava em estilo único.

Basta ver como se distribuem esses elementos em sua outra obra-prima, Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963), visão arriscada sobre o processo de tomada de consciência de um sertanejo (Geraldo Del Rey). Miséria, exploração no campo, fanatismo religioso, cangaço – tudo entra nessa ópera popular que culmina no trajeto do sertão ao mar, alegoria da consciência da exploração e, portanto, da possibilidade de libertação. Esses eram outros tempos, e, no início dos anos 1960, a parte progressista do País apostava na solução rápida de problemas ancestrais, entre os quais a miséria parecia o mais evidente e o mais urgente. Interrompido pelo golpe, esse processo cria uma onda reativa, na qual se insere Terra em Transe.

Essa montanha-russa da História encontra em Glauber seu mais perfeito tradutor. No exílio, produziu obra irregular, mas, ainda assim, contundente, como Claro, Cabeças Cortadas e O Leão de Sete Cabeças. De volta ao Brasil, moldou seu legado, o paradoxal A Idade da Terra (1980), ainda incompreendido. Ser brasileiro cobra alto custo e esse preço a pagar está todo na obra de Glauber. Falar que ele “morreu de Brasil” não é apenas modo de dizer.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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