Variedades

Obra integral do padre Antônio Vieira é lançada em 30 volumes

Missionário, pregador, conselheiro político, embaixador e visionário, o padre Antônio Vieira (1608-1697) deixou uma obra abrangente entre sermões, cartas, poesias, textos para o teatro e escritos políticos, agora reunida numa coleção completa de 30 volumes que a Edições Loyola publica no Brasil associada ao Círculo de Leitores de Portugal. Até agora já foram lançados dez livros. Os 20 volumes restantes, segundo o professor de Filosofia e editor Marcelo Perine, da Loyola, deverão chegar às livrarias até o fim do ano.

Concluída em dezembro passado, em Portugal, sob coordenação dos historiadores José Eduardo Franco e Pedro Calafate, a coleção foi doada ao papa Francisco e está sendo considerada o maior projeto da história editorial portuguesa. As razões são inúmeras. Ela exigiu anos de trabalho de 52 especialistas portugueses e brasileiros, uma equipe de tradutores de latim e um investimento superior a 1 milhão de euros (metade garantida pela Santa Casa de Misericórdia de Lisboa, que tem o monopólio da loteria em Portugal).

Organizada por temas, a coleção reúne não só os escritos de Vieira já publicados como vários manuscritos inéditos – correspondentes a um quarto das 15 mil páginas da coleção, segundo o coordenador José Eduardo Franco, que destaca a atualidade desses textos. Escritos por um destemido religioso, eles defendem os índios, condenam a violência dos colonos no Brasil, criticam o antissemitismo e desafiam os poderosos. Por causa desses polêmicos escritos, Vieira foi alvo de uma perseguição sem tréguas do Tribunal do Santo Ofício.

Chamado pelo poeta Fernando Pessoa de “imperador da língua portuguesa”, Vieira bem merece o título de profeta dos tempos modernos. Prova disso é sua obra magna, “A Chave dos Profetas”, um tratado teológico e político em dois volumes iniciado quando Vieira cumpria pena de reclusão determinada pela Inquisição em 1663, da qual escapou por indulto real. O tratado só foi concluído quando o padre estava à beira da morte.

O historiador José Eduardo Franco, citando seu colega francês Raymond Cantel, afirma que a ideia do Quinto Império defendida por Vieira nesse texto utópico foi precursora da Organização das Nações Unidas (ONU) erguida no século 20. É, enfim, a Cidade de Deus de Vieira, para fazer justiça a uma obra que não é um aggiornamento de Agostinho, mas celebra o amor universal e a destinação última do homem segundo o fundamento cristológico.

Esse dom profético de Vieira é comum a todos os grandes escritores, observa a escritora portuguesa Inês Pedrosa, que compara Vieira a Dostoievski. A exemplo do escritor russo, a injustiça e a corrupção foram dois temas martelados nos sermões do padre que, afirmando seus dotes de oratória, se tornou um celebrado pregador régio, conselheiro de D. João IV, participando de missões diplomáticas. Os sermões ocupam exatamente 15 volumes, ou seja, metade da coleção.

Eles são tão atemporais que podem ser lidos hoje sem que se desconfie que os sermões se dirigem ao público do século 17. Foi essa atualidade de Vieira que levou dois cineastas de vanguarda, o português Manoel de Oliveira e o brasileiro Julio Bressane, a adaptar para o cinema, cada um a seu modo, a obra desse escritor avesso ao gongorismo e ao discurso obscuro vigente no século 17. Vieira preferia um estilo direto. O “tal estilo culto” da época, segundo Vieira, “era boçal”. O padre recomendava: um sermão tinha de ser simples – monotemático, de preferência.

Manoel de Oliveira diz que não fez uma reconstituição da vida de Vieira em seu filme “Palavra e Utopia”, mas uma “evocação”. De fato, Lima Duarte, no papel do jesuíta, percorre os lugares por onde o pregador passou, mas não há a preocupação de fidelidade histórica. O mesmo pode ser dito a respeito da obra de Bressane, “Os Sermões” (1989), “transcriação” cubista em que entram fragmentos dos filmes mudos do francês Georges Méliès e do maior clássico de Orson Welles, “Cidadão Kane”, em que o magnata, no lugar de mover os lábios e dizer “rosebud”, murmura o nome de Vieira na hora da morte. Poderes de absolvição ele tinha. Em 1654, depois de proferir o sermão de Santo Antonio aos Peixes, em São Luiz do Maranhão, Vieira embarcou para Lisboa e foi vítima de um naufrágio. Após absolver a todos, Vieira rezou e o navio voltou à posição original, embora tenha sido saqueado por corsários, que, no entanto, pouparam os náufragos.

O sermão dos peixes é alegórico – dirigido aos mesmos, não aos homens, que parecem refratários a sermões que exaltam as qualidades dos primeiros, menos vorazes que os últimos, segundo Vieira. Em registro para o Museu Santo Antonio de Lisboa, feito em março do ano passado, a cantora Maria Bethânia eleva a voz ao perguntar “qual será ou qual pode ser a causa dessa corrupção” que afeta a terra que não se deixa salgar, carregando na atualidade política do sermão. Sorri quando Vieira evoca o elogio de Aristóteles aos peixes, os únicos animais que não se deixam domesticar. Afinal, quanto mais longe dos homens, melhor. “Quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer e o que tem”, conclui o sermão. Não é mesmo um conselho bom para tempos de operação Lava Jato? As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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