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Obra que fantasia uma França sob o Domínio do Islã chega ao País

Um país pacífico, próspero e com pleno emprego. Uma capital em que as mulheres não trabalham e onde as jovens abandonam minissaias, adotando vestes “não desejáveis”, como véus islâmicos integrais. Uma Europa em que a poligamia é legalizada, minaretes são construídos e até universidades públicas como a Sorbonne, privatizadas, acabam nas mãos de investidores árabes. Depois de vencer em 2010 o Prêmio Goncourt, um dos mais prestigiosos do mundo, o escritor francês Michel Houellebecq retoma no polêmico “Submissão” a crítica às transformações individuais e sociais, desta vez imaginando uma França islamizada.

“Submissão” é uma farsa, um livro de ficção política que relata a história de François, um professor de literatura da Sorbonne reconhecido por uma tese de doutorado notável sobre J.K. Huysmans. Escritor e crítico de arte que viveu em Paris entre 1848 e 1907, Huysmans não foi escolhido por Houellebecq por acaso: o autor passou pelo naturalismo e pelo simbolismo e escreveu sobre tentações satânicas, mas seu maior ponto de virada talvez tenha sido converter-se – ou submeter-se – ao catolicismo, o que o levou a escrever “En Route” (1895), “La Cathédrale” (1898) e “LOblat” (1903) no final de sua vida.

Houellebecq parte dessa alusão de François a Huysmans para estruturar sua narrativa. A história se passa em um futuro próximo, 2022, às vésperas das eleições presidenciais da França. O país chega ao pleito aos destroços, após dez anos de governo socialista de François Hollande – atual presidente na vida real. Nas ruas de Paris, rajadas de metralhadoras ressoam próximas aos bairros mais centrais. Jovens de movimentos identitários, de extrema direita católica, e salafistas, ultraconservadores muçulmanos, lançam-se a um conflito que põe o país à beira da guerra civil, situação mascarada por uma imprensa manipuladora, que não veicula a gravidade real dos fatos.

A disputa favorece os extremos e faz despontar uma terceira força política, liderada pelo fictício Mohammed Ben Abbes, candidato da Fraternidade Muçulmana – uma alusão ao grupo conservador Irmandade Muçulmana, que ascendeu ao poder em países como Tunísia e Egito durante a Primavera Árabe. Político jovem, habilidoso e com discurso republicano, Ben Abbes vai ao segundo turno das eleições com a candidata (real) de extrema direita Marine Le Pen, líder da Frente Nacional (FN), e acaba eleito graças à decisão do Partido Socialista (PS) de formar uma coalizão com os muçulmanos.

A eleição é sucedida de uma mudança brutal na sociedade, que Houellebecq, no entanto, descreve como lenta. Em três meses, o país é pacificado, a economia avança.

Então, as transformações tocam a vida de François – o nome próprio serve como um jogo de palavras com “francês”, ou o cidadão comum. Professor de literatura apático e alheio à busca pelo sucesso na carreira, o acadêmico vive entre as aulas que dá com indiferença, o deserto afetivo, a desagregação familiar absoluta, as estudantes com quem, às vezes, mantém relações, um envolvimento sem paixão com uma universitária judia que o troca por Israel e a vida sexual fracassada.

No que diz respeito ao protagonista, ou seja, “Submissão” traz a típica existência individual e social, vazia ao extremo, do personagem “houellebecquiano”, que permeia toda a obra do autor: “A Extensão do Domínio da Luta” (1994), “Partículas Elementares” (1998), “Plataforma” (2001), “A Possibilidade de Uma Ilha” (2005) e “A Carta e o Território” (2010). Foi o fato de captar com brilhantismo o imaginário e descrever de forma crua e sulfurosa esse perfil pós-moderno de homem europeu comum, sem rumos, sem fé, esmagado pelas implicações sociais do liberalismo político, econômico e sexual contemporâneo, que fez de Houellebecq um sucesso internacional de público e crítica desde os anos 1990. Não à toa o autor é descrito por muitos como um gênio à espera do Nobel de Literatura.

Em “Submissão”, Houellebecq repete a narrativa do deprimido crônico, politicamente incorreto, misógino, fracassado na vida privada e em geral bem-sucedido na carreira, para a qual não dá a mínima. Mas, como em “Plataforma”, por exemplo, alia uma temática explosiva ao personagem controverso – a bem da verdade, cada vez menos surpreendente aos olhos dos círculos literários da França. Em lugar do turismo sexual, um dos temas de seu terceiro livro, o autor põe em destaque uma suposta transição política, social e religiosa da França. Daí resultam a repercussão internacional, as discussões acaloradas entre críticos e, claro, suas vendas astronômicas.

“Submissão” tem os grandes méritos de Houellebecq, como a atualidade, a fluidez narrativa, a complexidade e o entrelaçamento de diferentes camadas temáticas e a precisão descritiva – o retrato do ambiente universitário decadente é magistral.

Mas, para detratores, o autor usou o recurso fácil da narrativa do medo que move a extrema direita na França. “Submissão” incorpora em sua história cenários da “grande substituição”, uma pseudoteoria descrita em 2010 pelo escritor extremista Renaud Camus baseada na ideia de que, pela imigração e pela fecundidade, “minorias visíveis” – árabes e negros – se tornarão maioria na França, substituindo a população francesa “de origem”, impondo costumes e religião e, em última análise, matando a herança greco-cristã que faz a essência da cultura europeia.

Esse argumento, em geral defendido por minorias fascistas ou de direita católica integrista, mal esconde sua islamofobia e, de tão radical e complotista, foi rejeitado até por Marine Le Pen, líder da extrema direita. Fragmentos esparsos desse pensamento, porém, têm sido incorporados por intelectuais como o historiador e romancista Max Gallo e sobretudo o ensaísta Eric Zemmour, autor de “Suicide Français” (2014), um best-seller no qual desfila clichês sobre a suposta islamização da França.

“Submissão” não faz a apologia aberta da extrema direita. É sutil até mesmo quando coloca a Frente Nacional, da família Le Pen, como último refúgio dos princípios republicanos e do Estado laico, e os socialistas como colaboradores da nova França muçulmana. Também é ambíguo, e pode até dar a impressão de ser um livro “islamófilo”, favorável ao Islã, embora o autor tenha definido em 2001 a religião de Maomé como “a mais idiota” -, ele voltou atrás no que disse.

Houellebecq faz ficção e, portanto, seus personagens são livres para expressar ideias e defender bandeiras, mesmo extremistas. Mas, diante de críticas duras a Submissão, o autor reiterou que não apoia nenhum partido ou nenhuma ideologia. “Eu não sou um intelectual. Eu não tomo partido, não defendo nenhum regime. Eu renego toda responsabilidade, e reivindico a irresponsabilidade”, ressaltou em uma entrevista ao jornalista Sylvain Bourmeau, publicada pela revista “The Paris Review”.

Independentemente de Houellebecq acreditar nos cenários que descreve ou não, o fato é que, antes mesmo de ser lançado, “Submissão” e sua fórmula de polêmica viva deu certo. Com a ofensiva de mídia de sua editora, Flammarion, o livro tomou as discussões literárias e políticas na França.

Não bastasse, no dia exato de seu lançamento, 7 de janeiro, Paris viveu o trauma do atentado ao jornal satírico “Charlie Hebdo”, que resultou em 12 mortos por dois radicais islâmicos. Chocado pelo assassinato de um amigo e por motivos de segurança, Houllebecq suspendeu entrevistas e se retirou, enquanto seu livro seguia sua senda: 120 mil exemplares vendidos em cinco dias, 345 mil em um mês e topo das vendas na França, na Alemanha e na Itália.

Na atmosfera de maniqueísmos do Brasil atual, não é difícil prever o futuro próximo.

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