“Vou dar uma festa e o tema vai ser a violência”, disse Berna Reale para a filha, Carla, enquanto concebia uma de suas obras para o 34º Panorama da Arte Brasileira, inaugurado recentemente no Museu de Arte Moderna de São Paulo. A artista criou uma boate dentro do MAM, uma instalação com sirenes, pratos de suspiros, paredes de papelão perfurado por balas de revólveres e embalada por música e áudios reais captados de viaturas de polícia. Mais ainda, ao lado desse trabalho, Berna Reale fecha a exposição com o vídeo Habitus, uma performance filmada em uma sala de necropsia. “Quis representar o presente”, afirma a paraense.
Da Terra, Da Pedra, Daqui, título do 34º Panorama, é uma provocação, como expressou a curadora Aracy Amaral, que organizou a edição com o curador adjunto Paulo Miyada. Além de convidar apenas seis artistas para a mostra – participam também Cildo Meireles, Miguel Rio Branco, Cao Guimarães, Erika Verzutti e Pitágoras Lopes -, Aracy selecionou, com consultoria de André Prous, da UFMG, 60 zoólitos de cerca de 2 a 7 mil anos atrás, descobertos em sambaquis (montes de conchas) da região do Sul do Brasil e preservados em museus nacionais e do Uruguai. “Dos participantes, acho que sou a que menos faz relação direta com aquele objeto”, define Berna Reale sobre a presença das esculturas de pedra polida na exposição.
Como um criador contemporâneo sente-se confrontado com aquelas peças ancestrais? Tomando o caso da artista paraense, a resposta foi “um soco no estômago”. “Quando fui convidada, disse que não sou uma artista de memória”, conta Berna Reale. “Mas a Aracy disse que não se tratava de memória em si, mas da questão do objeto estético, do que eles faziam na época para representar o seu mundo, para expressar o seu cotidiano, o seu entorno”. “Não posso pensar no mundo de hoje, na geografia, na ecologia, sem pensar na violência”, completa.
Sua instalação O Tema da Festa – a boate -, ela explica, foi a maneira que encontrou de colocar o espectador em um ambiente que se refere à criminalidade. “Poucos já se sentiram dentro de uma viatura”, diz a artista, também perita criminal desde abril de 2010. Os áudios verídicos, como o do momento em que uma mulher acaba de encontrar o marido morto, formam uma sonoridade “mórbida” e são usados como “a mídia” explora o tema, diz. “Quanto mais horrível for, mais visado, e parece que o mundo está o tempo todo se alimentando dessa violência”. “Queria que as pessoas entrassem na obra e se tocassem de que elas fazem parte dessa festa, contribuem para isso”, afirma.
Já Habitus, também inédito, é o trabalho mais forte de Berna Reale. Criadora no campo da performance, ela fez a obra em dois tempos. Primeiro, ela aparece em uma fábrica de reabilitação de presos costurando plásticos pretos que, depois, usa para ensacar corpos no IML – como ela já explicou, tratam-se dos mesmos utilizados para proteger ternos de políticos. “No dia da filmagem, morreram 28 pessoas e não tinha como controlar a entrada dos corpos na sala”, lembra Berna. Sobre o tema Da Terra, Da Pedra, Daqui, a artista acredita que esteja relacionada à última palavra da sentença. “Acho que a única relação que tenho com aquela terra (do título da mostra) é pelo corpo, pela matéria que para ela volta, pela violência com aquelas pessoas, com esse jovens que são enterrados, não têm tempo de viver.”
Para Berna Reale, que realizou no último domingo, 11, a performance Promessa, sobre igreja e sexualidade – ela caminhou pela procissão do Círio de Nazaré, em Belém, sua cidade natal, vestida com recriação do uniforme da Guarda Suíça Pontifícia e carregando uma bandeira da causa LGBT -, se daqui a muitos anos suas obras fossem encontradas como as peças dos sambaquis, elas seriam, afinal, um retrato de seu mundo. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.