Donald Trump arrepiou líderes que participavam da Assembleia-Geral da ONU, em 2017, quando, no fórum criado para a promoção da paz, ameaçou "destruir completamente" a Coreia do Norte. Por quatro anos, os discursos do então presidente americano, que criticou até mesmo o mármore da sede das Nações Unidas, em Nova York, se tornaram uma espécie de cruzada contra a ordem global.
Sem Trump, a Assembleia-Geral da ONU retoma o diálogo internacional, na terça-feira, 21, após a pausa de um ano e meio em razão da pandemia de coronavírus e após o período de embate entre americanos e o sistema multilateral.
Com 193 membros, o encontro é o primeiro grande fórum a reunir, presencialmente, líderes mundiais desde março de 2020. Ano passado, nos 75 anos da ONU, o encontro foi virtual. Desta vez, uma parte dos presidentes participará virtualmente, enquanto quase 90 devem se encontrar em Nova York.
A abertura da Assembleia-Geral da ONU será mais um teste das apostas pré-eleição americana, que davam conta de que Joe Biden na presidência dos EUA acalmaria os ânimos mundiais. "A ONU será uma grande decepção este ano", analisa Ian Bremmer, fundador da consultoria de risco Eurasia Group. "O encontro mostrará que não temos a liderança de que precisamos para responder com eficácia à crescente crise global e o caminho que estamos trilhando agora não é sustentável."
A Assembleia-Geral ocorre oito meses após a posse de Biden, que prometeu valorizar as decisões multilaterais e recolocar os EUA no centro de uma liderança global. O democrata reverteu uma série de ações do antecessor, com o retorno dos EUA ao Acordo de Paris e a volta do diálogo com aliados. Diferentemente de Trump, que incomodava a maior parte dos presentes na ONU, Biden fala a mesma língua dos defensores do multilateralismo.
A jornalistas, a embaixadora dos EUA na ONU, Linda Thomas-Greenfield, afirmou que Biden falará sobre suas "principais prioridades": "pandemia, combate à crise climática e a defesa da democracia e da ordem internacional baseada em regras". "Os três são desafios que ultrapassam as fronteiras. Eles envolvem todos os países do planeta Terra", afirmou Thomas-Greenfield.
O encontro acontece a seis semanas da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2021. A COP-26, como é chamada, é considerada o mais importante encontro climático multilateral desde a versão de 2015, que aprovou o Acordo de Paris.
A cada cinco anos, pelo acordo, os países devem demonstrar os progressos feitos para alcançar as metas estabelecidas e revisá-las. A proximidade do encontro e o fato de o governo Biden ter feito da agenda ambiental um pilar da política externa americana – e uma forma de fazer frente à China – fazem com que o assunto entre na ordem do dia das discussões da próxima semana.
A retomada do multilateralismo, no entanto, não estará na agenda apenas dos EUA, mas também do secretário-geral da ONU, António Guterres, e de parte dos aliados americanos. No entanto, o clima agora é diferente do vivenciado no G-7, em junho, onde Biden posou para fotos sorrindo ao lado de Boris Johnson e europeus.
"O discurso de Biden na ONU deve ser basicamente o mesmo do G-7, mas não será tão bem recebido. Sua credibilidade internacional não é a que era", afirmou o fundador da Eurásia.
A posição de Biden agora é desafiada pelas recentes ações de sua diplomacia, como a estratégia de retirada dos militares americanos do Afeganistão. Na sexta-feira, os EUA admitiram que o ataque que matou dez inocentes no Afeganistão foi um erro e se viram em um imbróglio diplomático com a França, após um pacto entre americanos, ingleses e australianos. Os EUA também têm sido cobrados a abrir mão do excedente de doses de vacina contra covid-19 e destiná-lo a países pobres de maneira mais expressiva.
Para Bremmer, a visão dos americanos sobre política externa faz com que os EUA não ocupem mais o papel de promover padrões globais para comércio ou democracia. "Isso é enormemente impopular nos EUA", afirma o analista. "Por mais divididos que os EUA estejam em política interna, em política externa o país está alinhado em questões-chave."
O fim da presença militar americana no Afeganistão, por exemplo, é um dos raros consensos bipartidários entre democratas e republicanos. Por motivos diferentes, eleitores dos dois partidos são favoráveis ao fim da guerra.
"Sempre disse que via Trump como um sintoma, não como a causa. A causa é muito mais profunda. E eu acho que muitos dos aliados americanos esperavam algo mais estratégico quando Biden disse que a América estava de volta", afirmou Bremmer.
Biden deve permanecer em Nova York só na manhã da abertura da Assembleia-Geral. A previsão é de que ele volte a Washington logo após seu discurso, sem encontros bilaterais. Esta é uma das medidas adotadas pela delegação americana para mostrar preocupação com a propagação do coronavírus. A comitiva dos EUA também será bem mais enxuta do que o normal.
A missão dos EUA na ONU chegou a pedir em carta aos demais governos que considerassem fazer o pronunciamento da Assembleia-Geral virtualmente, mas ao menos 83 líderes dos 193 países-membros planejam comparecer pessoalmente, incluindo o próprio Biden e o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro. A ONU define o modelo híbrido, de volta gradual dos encontros presenciais, como "um reflexo do atual estado do mundo".
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>