Há cerca de 20 anos, um repórter da Redação paulista da Folha de S. Paulo, deslocado por alguma razão para a Amazônia, percorria o velho Mercado do Ver-o-Peso, em Belém, quando, entre caixas de frutas e verduras, viu um caboclo ribeirinho dormindo profundamente, no chão. Para seu horror, ele leu, num pedaço de papelão, rasgado de alguma caixa de fruta, colocado próximo do caboclo: “Vende-se”.
Não ficou difícil imaginar, depois de acompanhar os desdobramentos do caso, com que sofreguidão ele transmitiu para a sede do jornal a sua descoberta espantosa: seres humanos continuavam sendo comercializados na capital de um estado brasileiro, em pleno segundo milênio da História da Humanidade.
Fosse o repórter apenas uma ovelha ingênua, desgarrada de um rebanho de ovelhas sabidas, a foto que ele enviou para São Paulo, lhe renderia, na Redação do jornal, muitas gozações, ou, quem sabe, uma reprimenda, talvez até a perda do emprego. Mas, nada disto ocorreu. Como ficou claro, no dia seguinte, quando a imagem do caboclo ribeirinho dorminhoco apareceu estampada, na Folha de S. Paulo, como um grito de pavor diante do chocante atraso da sociedade paraense.
O repórter e o jornal, obviamente, nada sabiam do espírito brincalhão do amazônida, uma herança dos índios que viveram, em paz, na região, antes da invasão devastadora dos homens brancos ambiciosos e violentos. Se soubessem algo a respeito deles, logo entenderiam o verdadeiro sentido da produção do cartaz grosseiro. Eles, ao contrário, viram a cena pela ótica distorcida do preconceito. Levados pela suposição de que nenhuma situação escabrosa pode ser considerada inadmissível neste “grotão” do País, como classificam a região, nem mesmo a venda pública de escravos, no mercado secular.
A incompreensão da Amazônia, revelada neste incidente, atingiu um nível delirante. Nos últimos anos, nenhum outro fato tão espetacular como este voltou a ocorrer na série de disparates com que a cobertura jornalística da Amazônia é realizada. Mas se instalou, lá, uma rotina: de tempos em tempos, desembarca na região um jornalista convencido de que caberá a ele a árdua tarefa de desvendar os segredos deste “Brasil profundo”, como a Amazônia também é chamada, já que ninguém, ali, parece ter competência para mostrá-la adequada e satisfatoriamente. Ele roda, durante quinze dias, um mês, três meses, e, acredita ter acumulado tanto conhecimento sobre a região que resolve despejá-lo num espaço maior do que o disponível nos jornais e nas revistas. Escreve um livro. E volta, para lançá-lo, em São Paulo, depois de se reintegrar à sua Redação, sentindo-se um novo bandeirante. Ou melhor, um novo jesuíta, pois, com sua obra formidável, poderá, agora, orientar a pobre gente, tão bugre, do Pará, do Amazonas, do Acre etc.
(Ilustração: Onças rondam os hotéis, na visão distorcida da Amazônia)