Variedades

Ouro de mina

João Cavalcanti compõe desde garoto, mas, em 16 anos de Casuarina, grupo de samba do qual foi vocalista até o fim de 2017, pouco cantou suas músicas em shows. Agora solo, e, aos 38 anos, na plenitude como cantor, ele se apropria de sua produção mais recente. No CD Garimpo (Som Livre/ MP,B), em duo com o amigo Marcelo Caldi, acordeonista, pianista e arranjador, ele apresenta inéditas e composições que haviam sido gravadas por outros intérpretes nesta década.

Na peneira dos garimpeiros, ficaram letras e melodias buriladas como hoje pouco se ouve. “Tem muito a ver com minha saída do Casuarina eu me reconhecer cada vez mais veículo de mim mesmo”, João conta. “Eu não queria mais comprar aquele barulho de ser crooner de baile. O grupo veiculava só um pedaço meu. Conseguia emplacar as músicas nos discos, mas não nos shows. Ficou doído. Agora, nesse formato tão cru e enxuto, embora o Marcelo seja múltiplo, a canção está sublinhada. E ficamos com uma palheta muito abrangente, multitonal.”

São composições que vêm de 2011, de antes do primeiro CD sozinho, Placebo. Em Garimpo, treze das 14 faixas são suas, 12 com parceiros, de Joyce Moreno (a bucólica Dia lindo) e Mario Adnet (Valsa de baque virado, um maracatu ao piano) ao pai, Lenine (a densa A causa e o pó, com participação do português António Zambujo).

Caldi coassina três, Bem melhor, sobre um “amor de tantos poréns, reduzido a senões” – inédita, como Consumido, com Jorge Drexler, Pêndulo, com Cláudio Jorge, e Não sós (só de João) -, o xote Sercidade e a carnavalesca Serpentina, esta, parceria com Edu Krieger.

A sensual O nego e eu, feita no passado por João para Roberta Sá, é a mais conhecida do conjunto. Escolhida para um clipe com Camila Pitanga e direção de Alexandre Nero, a deliciosa milonga Indivídua havia sido registrada por seu coautor, Pedro Luís, e também por Luana Carvalho. A letra, ao falar do processo da escrita e de uma musa que “não inventa crises nem exige crases”, é cheia de ressignificações: “É uma fonema que me enche a boca/ toda correlata me substantiva/ tão objetiva, superadjunta/ sou um prisioneira de sua sentença”).

Garimpo, sobre um amor que é “uma pedra a mais/ que é extraída/ de uma jazida em mim/ pode virar pó/ ou valer por dez/ mas por um momento/ é sem fim”, saíra na voz da parceira Antonia Adnet.

Os temas de João incluem a solidão da cidade grande, a origem do carnaval, uma reflexão sobre a gravidade. São tão variados quanto a sonoridade que resulta de seu encontro com Caldi. “Poderia cansar, sendo um CD de duo, mas pelo fato de eu tocar dois instrumentos a gente pôde dar coloridos diferentes”, considera o músico.

“As escolhas das canções foram para a construção de uma narrativa, não para ser um catálogo de parceiros. Na varanda fala da minha relação com meus filhos. Hoje, o exercício da paternidade em sua plenitude é um dos atos políticos mais fortes do meu cotidiano. A Valsa de baque virado propõe um processo de criação de identidade brasileira, uma reflexão sobre o racismo, em que o rei e a rainha são os do maracatu, e não os de uma monarquia falida”, explica João.

Garimpo é um CD forjado em afetos. Ambos de uma geração que dividiu noites na Lapa, os dois artistas começaram juntos há 20 anos, no grupo de sabor nordestino Rodagente. A inspiração veio da revolução musical ecoada de Pernambuco por nomes como Chico Science e Mestre Ambrósio.

Na virada para os anos 2000, veio a carreira no Casuarina. Caldi seguiu com seu trabalho como compositor, instrumentista e cantor. Os CDs do grupo e também Placebo contaram com colaborações do sanfoneiro. “A gente sempre esteve ligado, o duo era para acontecer”, diz Caldi. “Ele criou arranjos supermetalinguísticos e eu estou tomando conta do meu repertório, numa reintegração de posse bem-vinda. Esse disco é a síntese da vivência da gente”, define João.

Ele prepara outro trabalho, com participação de Jorge Drexler, e tem mais um em andamento, com o Coletivo 3, que criou com Alfredo Del-Penho e Pedro Miranda, duas outras crias da Lapa. O trio faz show hoje no Traço de União, às 21 horas.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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