Estadão

Paloma é filme sobre diferença, amor e ódio, mas principalmente, afeto

Incluído na competição do 30º Mix Brasil – e, portanto, habilitado para concorrer ao troféu Coelho de Ouro, atribuído pelo evento -, o longa de Marcelo Gomes, <i>Paloma</i>, já está em cartaz em salas da cidade, com horários cheios no Petra Belas Artes e alternativos no Itaú Augusta e na Reserva Cultural.

No recente Festival do Rio, <i>Paloma</i> venceu o Redentor de melhor filme e Kika Sena fez história como primeira mulher trans a vencer o prêmio de melhor atriz. Na Berlinale, anos atrás, havia uma forte torcida para que a chilena Daniela Veja vencesse como melhor atriz, por Uma Mulher Fantástica. O filme foi premiado em Berlim e venceu o Oscar de melhor produção internacional, mas Daniela não levou. Kika não é só a atriz de Gomes, também está em <i>Noites Alienígenas</i>, de Sérgio de Carvalho, outro filmaço brasileiro – do Acre – premiado em Gramado, exibido na Mostra e com previsão de estreia em 1º de dezembro.

<i>Paloma</i> é daqueles filmes que demoraram para sair. Primeiro, foi a dificuldade natural de montar uma produção no Brasil – e Marcelo tinha engatilhados outros filmes que saíram antes. Depois, veio a pandemia. No total, passaram-se dez anos desde que ele leu, no jornal, a notícia da mulher trans que provocou a ira de uma pequena cidade do sertão ao lutar pelo direito de se casar, de véu e grinalda, na igreja. "Me emocionei muito com essa história porque ela expõe contradições inerentes à sociedade brasileira. Fala de diferença, de amor e ódio, mas fala principalmente de afeto. No meio do caminho surgiu (Jair) Bolsonaro com seu discurso de discriminação e homofobia. Pode parecer que o filme foi feito contra ele, e seus seguidores. Na verdade, surgiu antes. Terminou coincidindo."

Diretor do talvez melhor filme brasileiro desde a Retomada nos anos 1990 – <i>Cinema, Aspirinas e Urubus</i> -, Gomes encarou <i>Paloma</i> como uma história de autodescoberta. Paloma luta pelo direito de ser quem é. Trabalhadora rural, choca-se com a intransigência da Igreja Católica, como instituição. O padre tenta ajudá-la, chega a enviar uma carta ao Vaticano. O repórter sugere – Gomes e Kika Sena deviam tentar mostrar <i>Paloma</i> ao papa Francisco, com seu olhar tão compassivo para o humano. "Ele ia ver como o nosso filme é bonito", ela diz.

E é. A trabalhadora não desiste. Encontra uma pequena igreja no sertão para realizar seu sonho. O caso repercute, vai parar na imprensa. O noivo, futuro marido, intimida-se. Sofre a pressão da família. Para Paloma, é uma decepção. Por mais que o ame, ela termina fazendo sexo com outro. A pergunta que não quer calar – a mulher, em Paloma, está seguindo a trajetória de liberalidade do homem, a quem tudo é permitido na sociedade machista? "Não é nada disso, Paloma é uma mulher que tem identidade e desejo próprios. A experiência faz parte de seu reconhecimento, não é uma vagabunda", esclarece Kika. E Marcelo Gomes – "Fico muito feliz de ter feito o filme com ela. Kika agrega sua força poética, política à personagem. Mexe com as pessoas. Em toda parte que mostro o filme, desde o Panorama, na Berlinale, o sentimento que ela provoca é sempre profundo."

O espectador que acompanha a trajetória autoral de Gomes reconhecerá imediatamente de que forma essa nova figura de mulher tão especial o atrai. "Gosto de criar personagens, fazer filmes sobre gente. Meus personagens estão sempre na busca por uma vida melhor, não importam as dificuldades, o sofrimento." É a busca de Paloma. Na vida, Kika é ainda mais forte do que sua personagem de ficção. É uma mulher estudada, com tese de mestrado – sobre personagens trans. É casada, com outra mulher, as duas são mães. "A Kika fez o meu filme antes do outro (Noites Alienígenas). Espero que Paloma, e o prêmio no Rio, abram espaço para atrizes tão talentosas como ela", conclui Gomes.

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