Tudo começou num papo de bar. Quantos desses não morrem juntamente com o último gole de cerveja, já quente, restante no copo americano? Esquecidos após uma noite de sonhos inebriados? Tais quais aquelas discussões existencialistas que só ganham vida ao redor de uma mesa de plástico, os planos se vão. O músico Rodrigo Campos não queria que sua ideia fosse mais uma delas. Numa conversa com o artista plástico e escritor Nuno Ramos, em um boteco no bairro da Liberdade, em São Paulo, mostrou-se impressionado com a leitura de O Mito de Sísifo, do franco-angolano Albert Camus, publicado em 1942. Comentou que estava criando algumas canções baseadas na leitura daquela obra. “Cheguei em casa e já mandei as músicas para o Nuno”, relembra Campos. Em poucos dias – às vezes dois -, Nuno enviava as letras de volta ao amigo.
Sambas do Absurdo, o disco, nasceu assim, em camadas, pedacinho por pedacinho. Veio com Rodrigo Campos e as letras de Nuno Ramos e chegou até a voz de Juçara Marçal. Por fim, as pinceladas de Gui Amabis surgiram para entortar mais a cabeça do ouvinte. Limítrofe, o álbum transpira a inquietação filosófica de Camus, seu existencialismo e o lidar com o fim, com o estar diante da morte.
Curiosamente, Juçara também já considerou O Mito de Sísifo como “sua Bíblia”, como ela brinca. “Pelas manhãs, eu abria o livro e pensava: E aí, o que Mito tem a me dizer sobre esse dia de hoje?”, ela diz e ri.
Convidada para uma apresentação em voz e guitarra, no Bar Semente, no Rio de Janeiro, em março de 2016, Juçara chamou Campos para fazer a apresentação com ela. O fato é que o show no Bar Semente foi importante para que Campos e Juçara entendessem o terreno que gostariam de habitar com o trabalho. O projeto Sambas era, contudo, dois terços do que viria a ser agora – faltava a chegada de Amabis.
“Não sabia como iríamos gravar essas músicas”, recorda Campos.
Queriam o samba, mas não o sorveriam da fonte tradicional. “É um tipo de música bastante existencialista”, avalia Campos, sobre a escolha do gênero no qual mergulhariam, ao citar composições de Nelson Cavaquinho, Cartola e Paulinho da Viola. “São sambistas existencialistas que cantam sobre a morte, sobre viver a vida da forma mais simples possível.”
Não bastava, contudo, emular o conceito das palavras de Camus somente nos versos. Era importante quebrá-lo na tentativa de transpor o tal absurdo literário também nos arranjos e harmonias. A chegada de Amabis foi providencial. O trabalho solo dele é bastante avançado nas questões de texturas e camadas e cujo currículo ainda inclui a função de produtor de discos interessantes, como 2 Atos, do rapper mineiro Matéria Prima, e em trilhas sonoras de filmes e séries.
Diante do esqueleto que tinha violões, guitarras e cavaquinhos de Campos e a voz de Juçara, Amabis experimentou pulverizar o samba. Deixou-o lá, em pequenos pedaços, o suficiente para ser reconhecível. “Era como se eu estivesse diante dos atores, mas ainda faltavam cenário, iluminação”, brinca ele.
Em Sambas do Absurdo, não há nome para cada uma das oito canções. A primeira música é chamada de Absurdo 8, a segunda é a Absurdo 7, a terceira é Absurdo 6 e por aí vai – e, sim, a contagem dos “absurdos” é regressiva, para confundir a cabeça dos desavisados. Acertam, contudo, na experiência desconstruída. Porque quando o cavaquinho bate no ritmo do samba, supõem-se o que vem a seguir. O trio não deixa que isso aconteça, contudo.
“Certa vez, conversando com meu amigo Manuel da Costa Pinto, que dá palestras sobre Camus”, conta Campos, “ele me disse que gosta de encerrar dizendo que Camus é um filósofo de boteco, porque ele não é acadêmico”. Faz sentido, portanto, Sambas do Absurdo ter nascido assim, entre copos vazios e mentes anuviadas.
SAMBAS DO ABSURDO Sesc Consolação.
R. Dr. Vila Nova, 245,
Vila Buarque, 3234-3000.
Sáb. (19), às 21h. Preços:
R$ 9 a R$ 30
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.