Cidades

Para historiadores, saída de trailers é “um atentado à cultura do Cecap”

Os historiadores Ellen Tais Santana e Tiago Cavalcante Guerra, da AAPAH (Associação Amigos do Patrimônio e Arquivo Histórico) produziram o texto "Os trailers e a identidade comunitária do Cecap", que o GuarulhosWeb reproduz

Recentemente, foi noticiado pela imprensa guarulhense que os tradicionais trailers localizados nas áreas públicas (e vazias) do Parque Cecap deveriam deixar imediatamente o local. Sob pressão do Ministério Público, CDHU e Prefeitura, os donos de cada comércio estão sendo obrigados a abandonar um trabalho de uma vida, sem projeções ou alternativas que permitam outro sustento.

Mais: comete-se um desatino cultural ao expulsar elementos que pertencem historicamente a paisagem urbana do bairro, em troca de uma pauta de “revitalizações” que não é explicitada e, tampouco, socializada com os moradores do bairro. O bairro Parque Cecap (Conjunto Zezinho Magalhães Prado), localizado no município de Guarulhos, foi idealizado e projetado por três expressivos nomes da arquitetura moderna, João Batista Vilanova Artigas, Fábio Penteado e Paulo Mendes da Rocha na década de 1960. A obra foi uma encomenda do Governo do Estado de São Paulo e fazia parte de um projeto político que financiava apartamentos para as classes trabalhadoras.

Foram construídos CECAP (Caixa Estadual de Casas e Apartamentos para o Povo) em outras cidades espalhadas pelo território do Estado ao longo da década de 1970. O Cecap – Guarulhos foi planejado para cerca de 55 mil habitantes e abarcaria, segundo os projetistas, uma estrutura urbana completa como escolas, hospital, posto de puericultura, estádio, cinemas, hotel, teatro, comércio próprio, clube e transporte. Abaixo a imagem da planta desenhada por Vilanova Artigas que representa elementos do que havia sido proposto para o bairro.

O projeto idealizado pelos arquitetos refutava o estilo de construir do Banco Nacional de Habitação (BNH) na década de 1960, por isso era considerado inovadora. Pretendia-se, na visão dos arquitetos, uma amálgama de racionalidade, de o uso de materiais inovadores na construção e de acessibilidade a todos moradores. Os condomínios foram dispostos frente a frente, sem grades ou cercas. Esse estilo moderno, visava às classes populares com o objetivo de promover uma sensação de igualdade, bem como a experiência do viver em comunidade.

Todavia, o Parque Cecap fora entregue em 1972 sem a infraestrutura prometida e necessária para o bem estar da população que emergia no bairro. E, por iniciativa dos moradores, que se arregimentavam para lutar e trazer equipamentos vitais para o cotidiano do local, foram chegando gradativamente serviços como: transportes, um clube comunitário, o grupo escolar, o Clube de Mães, comércios, posto de saúde, quadras esportivas, o espaço Varejão e etc.

O Cecap cresceu e entre as décadas de 1970 e 1980 foram sendo construídos outros condomínios, considerados mais modernos que os antigos em sua estrutura interna, mas iguais em essência. Assim com a chegada de novos moradores os problemas aumentavam de modo que uma das soluções para os que sofriam com, por exemplo, a falta de abastecimento de produtos e áreas de lazer, foi o surgimento de comércios sob a forma de trailers. Esse tipo de comércio não só abastecia a população, mas gerava emprego num bairro estritamente residencial e propiciava aos moradores mais espaços de socialização.

Os trailers fazem parte da história do Cecap há trinta anos e ainda servem a população como importante palco dos enredos do cotidiano comunitário. Segundo seus proprietários, o espaço ajudou na formação de casais; adolescentes cresceram; amigos se reencontram; jogos da seleção e dos times do coração foram vistos. São também espaços consolidados para o sustento de muitas famílias e de atendimento acessível com serviços e produtos para a comunidade.

São, enfim, agentes naquele espaço urbano. Os trailers contribuíram para a preservação da memória, da identidade e do espírito de comunidade, de modo que se observarmos como a sociedade se direciona para o individualismo e apoiam-se em relações virtuais, características que marcam profundamente as populações das grandes regiões metropolitanas no século XXI, veremos o grau da importância em perpetuar espaços que estimulam o contato físico e coletivo.

Os moradores, os proprietários dos trailers (grande parte também são moradores) estão lutando, na verdade, contra a arbitrariedade dos projetos que pretendem “revitalizar” e mudar a semântica dos espaços existentes no bairro. O diálogo e a participação nas decisões que envolvem qualquer projeto proposto para ao Parque Cecap deve ter a cautela de preservar a identidade comunitária, a memória afetiva e coletiva, a história e o legado do bairro para o futuro.

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