Variedades

Parábola dançante

Em um determinado trecho de Ritmo Louco, mais recente romance da escritora inglesa Zadie Smith publicado agora pela Companhia das Letras, a protagonista (cujo nome não é revelado) se lembra da cena de um filme musical, também chamado Ritmo Louco, de 1936, no qual Fred Astaire dançava com três figuras em forma de silhuetas. Como não conseguem acompanhá-lo, jogam a toalha e deixam o palco, decepcionadas. “Entendi que as três sombras também eram Fred Astaire”, diz a narradora, completando, assombrada, ao fazer uma descoberta depois de anos: o ator fazia black face, ou seja, escurecia o tom de pele, o que, no seu regozijo de fã, ela, uma mulher negra, jamais havia notado.

“Sei que isso leva a um assunto fundamental, que é o racismo”, comenta Zadie, em conversa por telefone com o jornal O Estado de S. Paulo, desde Nova York. “E também a questões fundamentais sobre comportamento: sou racista se agir de determinada forma? A arte deve se restringir depois de um determinado limite?” A cena, que abre o romance, revela-se fundamental para se entender a trama que está por se desenrolar para o leitor e, por extensão, o vigor do atual momento literário de Smith.

Afinal, ao rever a cena que a encantava quando menina, a narradora descobre que a dança fornece um caminho para cada um escapar de si mesmo e, tal qual uma sombra, consiga observar suas próprias formas mais perturbadoras com mais clareza. É o confronto do “eu” por meio dança que impulsiona o romance e permite a Zadie abrir diversas portas para tratar com segurança de hibridismo cultural, irreverência e da forma sombria com que se pode observar a sociedade e suas classes.

Do outro lado da linha, Zadie ouve com atenção as ponderações do repórter. “Escrevi, certa vez, um artigo para (o jornal) The Guardian em que mostrava como é forte em mim a ligação entre escrever e dançar, ou seja, um autor, como um bailarino, necessita transformar a força vital que está dentro de si em ação. E, se tentar bloquear isso, você não conseguirá o mesmo efeito se buscar outra alternativa: estará perdido.”

Ritmo Louco, o romance, trata de temas complexos e provoca reflexões sobre raça, gênero e cor ao acompanhar a trajetória de duas garotas inglesas de ascendência negra que, crianças, sonham em ser bailarinas. A narradora, porém, não apresenta talento para a dança e se transforma na assistente pessoal de Aimee, uma cantora pop famosa em todo mundo (uma espécie de mistura de Madonna com Beyoncé). Já a outra menina, Tracey, é habilidosa como dançarina, além de revelar um espírito independente à frente de sua época.

De amigas inseparáveis, elas acabam cada uma seguindo destinos diferentes até que, ao ser demitida de seu emprego, a narradora retorna a Londres, onde é confrontada com o próprio passado, no qual Tracey exerce papel fundamental. Com habilidade, Zadie Smith narra a história alternando diversos tempos, começando no presente para então jogar com os anos 1980 e 90. É justamente essa mudança de ritmos que faz o romance se aproximar de um musical.

“Sempre pensei nesse tipo de filme como o ideal para apresentar problemas terríveis e soluções fantásticas”, comenta. “Os musicais são, para mim, uma mistura do sublime com o desagradável e, ao se relacionar com a escrita, a dança oferece verdadeira aula sobre ritmo, atitude, posicionamento, dramaticidade.”

Filha de mãe jamaicana e pai inglês, Zadie Smith é, desde os 24 anos, uma das escritores preferidas dos grandes nomes da literatura. Com Dentes Brancos, seu primeiro livro, publicado em 2000, ela arrancou elogios de Salman Rushdie (“Trata-se de uma estreia incrivelmente segura, bem-humorada e séria”) a Martin Amis (“É possível ler a escrita de Zadie com um sorriso constante de admiração”). E, já em sua primeira obra, a autora revelava as pistas que a tornariam célebre: por meio de uma narrativa que avança e retrocede no tempo, Zadie captura com precisão, em Dentes Brancos, o receio de se viver em uma cultura considerada estranha.

Em Ritmo Louco, ela dá mais um passo em sua evolução criativa ao escrever, pela primeira vez, na primeira pessoa. “É algo cultural, pois, como cresci na Inglaterra, tive contato com diversos tipos de leitura. Descobri, assim, uma nova forma de ver outras pessoas”, conta Zadie, lembrando que todos gostam de controlar a percepção que cada um provoca no outro. “Mas não busquei apresentar o lado pessoal que é visto em redes sociais como Facebook ou Instagram, nos quais você mostra aos outros o que você deseja que seja visto. Saí atrás de uma experiência realmente íntima, nas profundezas do interior pessoal, e as descobertas nem sempre são agradáveis.”

Zadie buscou ainda conferir um tom de parábola para seu romance, algo que se tornasse muito próximo do leitor. “Eu precisava encontrar o tom adequado, que funcionasse como um imã em que a pessoa, à medida que passasse as páginas, pudesse se convencer de que era como aquele personagem, que os fatos lhe pareceriam familiares, enfim, que estivesse vendo a própria infância passada a limpo.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Posso ajudar?