Uma articulação de apoiadores de Jair Bolsonaro (PL), composta por pastores e empresários, criou um fundo financeiro para custear materiais destinados à reeleição do presidente e enviá-los a milhões de eleitores de todo o País. Batizada de Casa da Pátria, a ação é uma campanha paralela. Os gastos com serviços e produtos não aparecem na prestação de contas de Bolsonaro e podem configurar caixa 2, segundo especialistas.
"É um movimento independente. Lógico que existe um custo para isso. Existem grandes empresários, líderes, que vão fazer um fundo para imprimir isso aí", disse ao <b>Estadão</b> Raimundo Barreto, um dos coordenadores do grupo. Barreto se recusou a apresentar o orçamento da ação, mas disse que entre os apoiadores estão pessoas especializadas em gráficas e logística. "A gente vai cumprir o que está sendo falado", declarou ele.
A iniciativa se apresenta como "o maior movimento civil de apoio" a Bolsonaro. Foi idealizado pelo Movimento Acorda, por meio do qual militantes de direita se posicionavam contra o "ativismo judicial" do Supremo Tribunal Federal (STF), e conta com o apoio de entidades religiosas lideradas por pastores expressivos do meio evangélico.
A proposta do grupo é planejar, criar e distribuir bandeiras que trazem nome, número de urna, slogan de campanha e foto de Bolsonaro. O pretexto é fazer com que cada "casa patriota" se torne um "comitê de apoio ao presidente". Um site que apresenta o movimento e recolhe dados de eleitores, como número de WhatsApp e endereço, foi criado no fim de julho pela Íconi Marketing, de Pernambuco, empresa de Raimundo Barreto.
"Eles me contrataram. Contrataram, não. Foi prestação de serviço, né? Somos voluntários. Eu desenvolvi a página e toda a estratégia de marketing do Casa da Pátria", disse Barreto, que durante a pandemia de covid-19 recebeu R$ 5,3 mil em parcelas do auxílio emergencial.
A lei eleitoral veda a veiculação de propaganda eleitoral em sites de pessoas jurídicas, com ou sem fins lucrativos. A página do Casa da Pátria não está relacionada entre as que Bolsonaro informou à Justiça Eleitoral que usaria para campanha. Ademais, segundo especialistas, os custos da criação de um site e de um sistema de gerenciamento de mensagens e de grupos de WhatsApp seriam superiores ao limite de despesa estipulada em lei para que eleitores individualmente façam campanhas espontâneas, de R$ 1.064,10.
Mesmo serviços voluntários que ultrapassam esse valor precisam ser declarados pelos candidatos com um custo estimado baseado em preços de mercado. Há uma série de regras para financiamento eleitoral. Além de garantir o controle social, a transparência sobre os financiadores de campanha serve para que todos os candidatos concorram em condições de igualdade.
"São bandeiras, adesivos, posts e outros materiais para colocarmos inclusive nos nossos carros. Temos um outro coordenador que é de São Paulo, que é especializado em logística. Estamos fazendo um orçamento para a impressão desse material, a embalagem desse material. Inclusive, uma bandeira que deve ser de pano, porque a durabilidade é maior, para ser enviado para as casas das pessoas que estão se juntando a nós", diz a mensagem enviada nos grupos de WhatsApp dos eleitores inscritos.
Na lista dos líderes evangélicos que apoiam o Casa da Pátria estão nomes conhecidos, como Robson Rodovalho, ex-deputado federal presidente da Igreja Sara Nossa Terra, fundador do Fórum Evangélico Nacional de Ação Social e Política (Fenasp) e presidente da Confederação dos Conselhos de Pastores do Brasil (Concepab). Neste ano, Bolsonaro foi à igreja do aliado e também o recebeu no Palácio do Planalto.
Renê Terra Nova, do Ministério Internacional da Restauração (MIR); Wilton Acosta, pastor da Sara Nossa Terra e candidato a deputado federal pelo Republicanos de Mato Grosso do Sul; Associação dos Parlamentares Evangélicos do Brasil (Apeb); Rede de Unidade das Igrejas (Reuni) e Movimento Conservador Cristão também aparecem como apoiadores.
Representantes do Casa da Pátria foram recebidos por Bolsonaro no Palácio da Alvorada a 29 de agosto. Os registros do encontro foram publicados na página oficial do movimento no Instagram. O empresário Jeferson Baick, responsável pela comunicação visual do Casa da Pátria e um dos coordenadores do movimento, posou para fotos com Bolsonaro.
Os perfis do grupo nas redes sociais têm poucos seguidores. Entretanto, os pastores e políticos que endossam o movimento somam milhões. E as denominações religiosas que lideram têm milhões de membros distribuídos por milhares de templos em todo o País.
O coordenador nacional do projeto, Renato Saito, e o empresário responsável pela comunicação visual do Casa da Pátria, Jeferson Baick, foram recebidos por Bolsonaro e fizeram fotos com ele.
O grupo abre espaço em suas publicações e no site para outros concorrentes: Onyx Lorenzoni, candidato ao governo do Rio Grande do Sul; Magno Malta (PL) e Marcos Pontes (PL), candidatos ao Senado pelo Espírito Santo e por São Paulo; Marcos Feliciano (PL-SP), Wesley Rós (PL-SP) e Wilton Acosta (Republicanos-MS), todos pastores e postulantes à Câmara. Feliciano concorre à reeleição e Acosta tenta ser deputado federal pela quarta vez.
"É uma ação que surge de um movimento de união de pastores do Brasil inteiro com uma ideia de fazer uma extensão da casa de cada pessoa num comitê. A pessoa que entra no programa Casa da Pátria se inscreve e automaticamente recebe dos doadores um kit. Esse kit é uma bandeira com a informação de que essa é uma casa da Pátria", explicou Rós. "Falamos em 3 milhões (de pessoas), mas acredito que deve passar, devido à mídia, à força dos evangélicos no Brasil inteiro. Chegou até no presidente da República". Rós negou que os gastos sejam vultosos e afirmou que as despesas seriam cobertas por células evangélicas presentes em todas as cidades.
<b>Nova versão</b><b>
Além das declarações de Barreto e Rós, a mensagem oficial disparada para eleitores que se cadastrassem no Casa da Pátria também citava o envio de material. "Você receberá uma identificação para colocar em sua casa para que todos identifiquem que é uma Casa da Pátria . Reúna seus amigos e parentes regularmente, exponha as orientações semanais para todos ficarem cientes dos fatos e avanços da campanha", dizia o texto.
Depois dos primeiros contatos da reportagem com líderes do movimento, porém, o discurso foi ajustado, sobretudo após o pedido de entrevista com o coordenador Renato Saito, que se negou a dar declarações. A reportagem foi removida dos grupos de WhatsApp e bloqueada por Saito tanto no aplicativo quanto na página oficial do Instagram.
As orientações transmitidas aos cadastrados pararam de mencionar o envio de materiais. "Disponibilizaremos materiais e bandeira para você imprimir e colocar em sua casa", diz a nova versão dos comunicados.
Wilton Acosta negou taxativamente que peças publicitárias seriam produzidas e enviadas aos eleitores. "É uma iniciativa de pessoas, de líderes que querem ajudar a reeleição do presidente", argumentou ele. "Não tem doação de empresário nenhum, não tem confecção de material nenhum, não tem envio de material nenhum. Essas sugestões de materiais que podem ser usados serão hospedadas no site."
Robson Rodovalho disse, por sua vez, que não faz parte da administração do projeto, mas afirmou não ver conflito com a lei eleitoral. "É um projeto de pessoas que acreditam na pátria, nos conceitos de família, de vida. Botar uma bandeira em cada lar, fazer uma oração pelo Brasil, e individualmente apoiar o presidente… Não temo de jeito nenhum qualquer problema com a Justiça Eleitoral. É uma iniciativa pessoal, como Caetano Veloso e Daniela Mercury fizeram", alegou o religioso, citando os apoiadores do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Com os indícios de irregularidades eleitorais apontados, o <b>Estadão</b> voltou a pedir esclarecimentos ao Casa da Pátria. O movimento informou que distribui apenas "peças digitais" e garantiu ser voluntário o trabalho desenvolvido. Não apresentou, porém, estimativa de custos.
"Reforçamos que nosso trabalho é feito de forma voluntária e consiste na distribuição de peças em formato digital para que, uma vez baixadas, o cidadão de forma livre e independente possa fazer a produção delas, ou a veiculação das peças em suas redes sociais, manifestando, assim, seu apoio à causa e aos nomes que hoje melhor lhes representem (sic). O site é público e aberto a todos que queiram fazer inscrição, participar de livre vontade e manifestar apoio voluntário à candidatura do presidente", destacou a nota do Casa da Pátria. A equipe da campanha do presidente Jair Bolsonaro foi procurada, mas não se manifestou.
<b>Crime eleitoral</b>
Especialistas em Direito Eleitoral consultados pelo <b>Estadão</b> viram indícios de abuso de poder econômico e de configuração de caixa 2 na estratégia elaborada pelo Casa da Pátria. Por se tratar de um movimento organizado e amplo com empresas, inclusive de logística e de produção de materiais alusivos à reeleição de Bolsonaro, os custos, ainda que estimados, deveriam estar presentes nas prestações de campanha dos candidatos citados.
"O custeamento de materiais impressos de promoção de propaganda eleitoral com valor vultoso, significa o emprego de dinheiro em favor de determinada campanha eleitoral. E toda e qualquer arrecadação e despesa devem constar da prestação de contas, garantindo transparência, e por conseguinte, igualdade de condições entre os concorrentes dada a limitação da propaganda eleitoral", afirmou o advogado Helio Deivid Amorim Maldonado, membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral (Abradep).
Para o professor da Universidade Federal da Paraíba e integrante da Abradep Marcelo Weick Pogliese, as informações prestadas publicamente pelo movimento político sugerem que as despesas superam os R$ 1.064,10 que voluntários podem gastar para promover candidaturas.
"O que vemos é uma padronização de material, portanto efetivamente uma propaganda eleitoral. Pelo que relata, esse material será destinado gratuitamente ao eleitor. Como esses valores ultrapassariam os R$ 1.064,10, precisariam ser objeto de prestação de contas do candidato. Tem que passar pela conta, se não é configurado caixa 2", disse o professor.
Na avaliação do advogado especializado em Direito Eleitoral Eduardo Damian, a declaração dos gastos, ainda que módicos, é obrigatória. "Nenhum tipo de propaganda feita por pessoa física, até R$ 1.064,10, é ilícita. No entanto, se o candidato tiver ciência, ele tem que declarar. Material gráfico que está sendo mandado de forma organizada por um grupo de pessoas deveria entrar como gasto de campanha do candidato, com CNPJ da campanha, da gráfica e tiragem. E se envolver doação de pessoa jurídica, é absolutamente ilícito", disse Damian, ex-presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>