Quantas vozes pode haver dentro de uma cantora? Elis Regina dizia que muitas, e que não era a voz quem cantava, mas a alma. A voz é uma escolha. Depois de testar nos palcos da noite de Macapá todas as que poderiam sair de si, os vibratos das rainhas do rádio e o suingue das sambistas, os sussurros de bossa nova e a euforia das FMs, Patrícia Bastos começou a entender o que era só seu. Debaixo de todas as camadas havia uma pérola.
Zulusa, seu quatro álbum, saiu em 2013 e, pela primeira vez, a cultura transbordante dos terreiros do Amapá ganhava o foco em uma proposta musical de abrangência nacional. O Amapá, mostrava Patrícia, poderia ser considerado uma espécie de elo perdido em seu próprio País. Pois naquelas franjas, pelas fronteiras com a Guiana Francesa, há flores que só deram ali, como o batuque amapaense e o marabaixo. Patrícia colheu todas com muita delicadeza e, felizmente, fez mais do que algo que poderia ser regional ou qualquer coisa que o levasse aos compartimentos da world music. Patrícia e o produtor Dante Ozzetti. “Ele entendeu o que eu queria dizer e eu percebi que não estava só.”
Em geral, é recomendável que um álbum receba um selo de clássico depois de pelo menos 20 anos de seu lançamento. No caso de Zulusa, vale se antecipar ao tempo. O disco que apresenta um outro Brasil e seus compositores não de forma didática, mas universalizada e com uma produção contemporânea vibrante venceu em 2014 duas categorias do 25º Prêmio da Música Brasileira, a de melhor disco regional e de melhor cantora regional. Infelizmente, “regional”, apesar de todas as boas intenções, foi a forma que viram Patrícia naquele instante. Hoje, o momento já é outro.
Seis anos depois, Zulusa está sendo lançado em vinil com um show apenas neste domingo, 10, no Sesc Pinheiros. Quando se fala na cultura amapaense, é impossível contornar as intersecções paraenses de sua vizinhança. Então, os planetas que giram nessa órbita, do Pará, do Amapá e de São Paulo, estarão presentes. Dante, com toda a visão paulistana que fez de Zulusa ser abrangente, toca violão e faz a direção musical, e Fi Maróstica, pela primeira vez, assume o baixo que consegue tocar lindamente no tempo e no espaço que muitos músicos não percebem. Fernando Sagawa faz sax, flauta e teclado. A ala amapaenses tem Nena Silva (uma presença de espírito que chega com vários instrumentos da percussão amazônica, como os tambores de marabaixo e os batuques do quilombo do Curiaú), Hian Moreira (bateria) e Fabinho Costa (guitarra e violão). Os convidados especiais serão Zé Renato, Manoel Cordeiro, Felipe Cordeiro e Marcelo Pretto.
“Acho que eu não acreditava muito no que eu pensava”, lembra Patrícia dos dias que antecederam Zulusa. “Essa história de fazer o Amapá ser universal… Só quando encontrei Dante foi que percebi que podia acreditar naquilo.” Patrícia, 49 anos, vem de uma família que se alimenta de música. Seu irmão é Paulo Bastos, percussionista, pesquisador e um dos maiores compositores amapaenses desta geração. Suas canções estarão em breve em seu primeiro disco autoral. Sua mãe é Dona Oneide, mulher de voz potente que se tornou a primeira a gravar um disco em sua terra e que também vai mostrar logo um novo álbum produzido pelo filho Paulo. Patrícia se formou primeiro em administração, mas decidiu aos 18 anos pelas rodas e pelos palcos ao lado da Banda Brinds, com a qual ficou por cinco anos.
De Zulusa a Batom Bacaba, seu disco mais recente, de 2017, parece que foi uma era. O que Zulusa apresentou no canto sutil daqueles que acreditam na voz, Batom Bacaba pavimentou. Já vinham do primeiro os nomes que voltariam no segundo, como geniais compositores como Joãozinho Gomes (um clássico dos novos tempos é U Amassu i u Dubradú, de Dante e Joãozinho, com o refrão cantado na corruptela amapaense que quase se torna outro idioma), Enrico Di Miceli (que fez com Joãozinho a belíssima Incantu), o irmão Paulo Bastos (marabaixeiro de elite com seu ladrão No Laguinho) e Val Milhomem (um excepcional criador e cantor que aparece com Joãozinho na autoria de Mal de Amor).
O show tem mais. Algumas músicas de Batom Bacaba também entram, como Mei Mei, de Val e Joãozinho Gomes. No espaço de um disco para outro, houve um ganho de público em São Paulo, conforme diz Patrícia. “As pessoas passaram a nos procurar mais para shows.” Existe uma força em Patrícia que a serenidade de sua fala parece esconder. Mas é na humildade que essa mulher fica ainda maior.
PATRÍCIA BASTOS
Sesc Pinheiros. Rua Paes
Leme, 195, tel. 3095-9400.
Dom. (10), às 18h
R$ 12 a R$ 40
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.