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Patrimônio histórico em Guarulhos: estado da arte

Considera-se “Patrimônio Histórico” tudo aquilo (ou a soma) que possui “valor” e pertencente a memória e a história de uma família, de um grupo, de uma comunidade, de uma coletividade. Vincula-se à ideia de bens, de propriedade do coletivo, mas principalmente do reconhecimento de valor atribuído.
 
No Brasil, patrimônio histórico foi associado aos monumentos e edifícios. Bens materiais que reconhecido pelos seus valores históricos e artísticos, assumiam funções memoriais. Por isso deveriam ser preservados. 
 
Casa Amarela, tombada pelo decreto 21143 de 2000. Acervo: AAPAH/Bruno Leite de Carvalho. Ano: 2015.
 
 
O conceito de patrimônio utilizado oficialmente no Brasil surgiu com a elaboração feita por Mário de Andrade de um anteprojeto, a pedido do então Ministro da Educação, Gustavo Capanema, que deu origem ao Decreto nº. 25, de 1937, que cria o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/IPHAN. 
 
No contexto de criação da Superintendência do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) a ideia de conformar uma identidade para a nação brasileira a partir dos bens a serem preservados. Até a década de 1960 é imperativa a ação do Estado (e da burocracia) em definir valores e sentidos aos bens preservados.
 
Ao longo dos anos 70 e 80 as políticas de preservação patrimonial foram sendo redefinidas e ampliadas conforme uma mudança dos paradigmas. De uma visão monumentalista, a ideia de patrimônio incorpora noções relacionadas ao planejamento e desenvolvimento urbano do país.
 
Antes dominado por profissionais da arquitetura, o conceito se amplia na contemporaneidade, incorporando outras dimensões: centros históricos, conjuntos urbanos, oralidade e imaterialidade, passam a pertencer ao escopo das possibilidades de preservação. 
Em resumo, de um passado associado à monumentalização e no qual o Estado, a priori, selecionava os bens indicativos da identidade social, temos hoje a participação da sociedade nas várias esferas de decisões e muitas vezes mobilizada a fazer reivindicações. Isto motiva também a importância de se pensar o uso social dos bens tombados.
 
Guarulhos
Defender o patrimônio histórico em uma cidade como Guarulhos não é uma tarefa fácil. O espaço dinâmico, competitivo e desenvolvimentista, comum as grandes cidades, esbarram muitas vezes com iniciativas que pregam a preservação, a proteção e a manutenção de bens que por vezes nada dizem para a cidade atual. Valores que se contrapõe. Duas situações são bem ilustrativas deste desafio. 
 
A partir de um decreto dos anos de 1960, foi autorizado ao poder público guarulhense a eliminação de documentos oficiais. Ato comum em muitas prefeitura naquela época (e pratica presente das elites políticas no Brasil afora), a municipalidade destruiu registros e vestígios da formação da cidade. Saltamos um pouco no tempo, em 2010. Como forma de “comemorar” os 450 anos da cidade Guarulhos, foi autorizado pelo Conselho de Patrimônio Histórico o destombamento do Casarão José Saraceni. Mesmo com a brava, mas frágil resistência de organizações da sociedade civil, a casa foi derrubada na calada da noite cedendo vagas aos carros no estacionamento do Shopping Internacional de Guarulhos.   
 
Somados a esses fatos, podemos citar outras destruições: a aculturação de manifestações populares, a invenção de “tradições” alheia ao conjunto da cidade, o desordenado crescimento urbano que levou ao desaparecimento de edifícios símbolos, a alteração proposital de fachadas de prédios com o intuito de impedir o seu tombamento, etc.
 
Estes acontecimentos ganham um contorno mais dramático pela total alienação e ausência de impacto na maioria da população. O patrimônio histórico de nossa cidade foi (ou é?) destruído com pouca resistência e com a complacência muda da maioria.
Na contracorrente e de maneira marginal, as resistências presentes no poder público e na sociedade civil produzem dores de cabeça e pode se gabar de alguns avanços nos últimos anos.
 
Em 2000, através da lei Orgânica, a prefeitura tombou uma série de bens imóveis, protegendo-os de ameaças imobiliárias. O decreto foi organizado de maneira urgente por técnicos da prefeitura visando ameaças que rondavam os casarões José Saraceni e José Maurício de Oliveira.  
 
Em 2004, a categoria patrimônio histórico é incorporado ao Plano Diretor como um dos quesitos para o cumprimento da função social da propriedade e objeto de uma zona especial, no caso a ZPP (Zona de Preservação do Patrimônio). 
 
Em 2007, a cidade organiza a sua primeira tabela de temporalidade, dando ordenamento ao processo de arquivamento dos documentos oficiais, criando níveis e critérios para a guarda ou eliminação.
 
 
Em 2009, é criado o Conselho Municipal do Patrimônio Histórico, Artístico, Ambiental e Cultural do Município de Guarulhos (CMPHAACMG) com poder deliberativo e consultivo, e tendo a incumbência de promover políticas de valorização e proteção ao patrimônio histórico da cidade. 
 
No arco destas conquistas, representadas pela ação mais organizada da sociedade civil, temos também a criação do Parque Natural Municipal da Cultura Negra – Sítio da Candinha, a implantação do Geoparque Ciclo do Ouro e ações de proteção a Festa da Carpição de Bonsucesso.
 
Nos trâmites burocráticos, o início da institucionalização do Conselho Municipal do Patrimônio Histórico com a criação do regimento interno e da fixação de datas para reuniões. Recentemente foram pedidos o tombamento de vários outros bens, processos ainda não iniciados. Também se planeja o inventário participativo do patrimônio histórico, medida um pouco tardia, mas necessária. 
 
Deve-se destacar também a desapropriação do casarão José Maurício Oliveira que está em vias de receber as primeiras ações de restauro, assim como uma destinação social por meio de uma parceria entre as secretarias de Cultura e da Educação.
 
Vivemos ainda com muitas ameaças ao patrimônio histórico da cidade. Como uma organização que atua na defesa e promoção destes bens, a AAPAH está sempre nesta difícil luta, como Sísifo carregando uma pedra até o cume da montanha. Segundo a mitologia, vendo a mesma cair de suas mãos quando prestes a chegar, Sísifo retorna ao pé da montanha para erguer a pedra e escalar novamente.
 
Tiago Guerra – Historiador, responsável pelo Núcleo de Patrimônio Cultural da AAPAH, coautor dos livros “Cecap Guarulhos – Histórias, Identidades e Memórias”, “Guia Histórico Cultural de Logradouros – Lugares e Memórias de Guarulhos” e “Signos e Significados em Guarulhos – Identidade – Urbanização – Exclusão”. 
 

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