Estadão

Paul McCartney mostra em SP o espetáculo perfeito que já é mais brasileiro que inglês

Desde 2010, nenhum país, com exceção dos Estados Unidos, recebeu tantos shows de Sir Paul McCartney quanto o Brasil. O roqueiro desbravou nossas terras como poucos artistas internacionais foram capazes, e encantou multidões em diversas capitais brasileiras nos últimos anos. A título de comparação, nem mesmo os ingleses têm a oportunidade de assistir ao seu filho mais notório tocar com tanta frequência.

Um privilégio raro que se deve a dois fatores. O primeiro tem nome e sobrenome: Luiz Oscar Niemeyer, empresário histórico do showbusiness nacional, responsável por produzir todas as turnês do eterno beatle no país. Além dele, o público brasileiro sempre teve muita influência para Paul, que gosta de tocar para plateias entusiasmadas e compostas por várias gerações de fãs: avós, pais e filhos que compartilham o amor pela música dos Fab Four.

<b>Back In Brazil</b>

Contando os nove shows da turnê <i>Got Back</i> pelo País – incluindo a apresentação surpresa no minúsculo Clube do Choro, em Brasília -, Paul chegará a um total de 37 concertos no Brasil desde que pisou pela primeira vez por aqui em 1990, na icônica exibição que atraiu mais de 180 mil pessoas ao Maracanã, palco ao qual ele retorna após mais de trinta anos no dia 16 de dezembro.

O Allianz Parque, por sua vez, recebeu o compositor e multi-instrumentista pela quarta turnê seguida. O estádio, situado na zona oeste da capital paulista, tem até uma ala especial dedicada ao astro inglês, que inaugurou o local em 2014, retornando em 2017, 2019 e agora em 2023.

<b>Rockshow</b>

Na primeira das três noites esgotadas em São Paulo, McCartney subiu ao palco às 20h30 vestindo um sobretudo preto e ostentando o sagrado contrabaixo Hofner para as 45 mil pessoas que berravam como se estivéssemos em 1964. Em poucos segundos, ele entoou os versos de <i>Can t Buy Me Love</i>, clássico dos Beatles, que pode ajudar a explicar a razão pela qual um dos homens mais ricos do mundo ainda faz questão de seguir tocando ao vivo aos 81 anos:

"Eu não me importo muito com o dinheiro / Dinheiro não pode me comprar o amor"

"Oi São Paulo! Boa noite, manos!", saudou Macca, em bom paulistanês, antes de desfilar o talento da banda com o rock setentista de <i>Junior s Farm</i> – Rusty Anderson e Brian Ray, nas guitarras; Paul Wickens, nos teclados, e Abe Laboriel Jr., na bateria, tocam com a lenda britânica há mais de vinte anos.

Detalhe: assim como havia acontecido em Belo Horizonte, o baterista tocou grande parte do show com apenas uma mão devido a uma torção no pulso. Esforço monumental que não impediu os músicos de reproduzirem cada nota com o respeito que tais faixas demandam. Isto é, não há espaço para improvisações, a não ser no terreno blues de <i>Let Me Roll It</i>, onde uma jam se desdobra para <i>Foxy Lady</i>, de Jimi Hendrix.

Além deles, há o Hot City Horns, trio de rapazes que incorporam o saxofone, trompete e trombone a execuções inesquecíveis, como no riff de <i>Letting Go</i>, faixa dos Wings com pegada soul music, nas dançantes <i>Got To Get You Into My Life</i> e <i>Lady Madonna</i>, ou nas partes épicas de Live and Let Die, com as tradicionais pirotecnias que remetem ao filme de James Bond.

A voz de um senhor octogenário, claro, não é a mesma de outrora, mas ainda segura quase três horas de show com competência admirável. É capaz de alcançar os agudos de <i>Helter Skelter</i>, precursora do heavy metal, ou de <i>She s a Woman</i>, raridade da fase "iê-iê-iê" dos Beatles, a qual ele não tocava desde 2004. Sua projeção vocal ganha maior destaque, porém, quando descansa sobre as singelas melodias de <i>Blackbird, I ve Just Seen a Face</i> ou <i>Dance Tonight</i>, que compõem a seção acústica do concerto.

Quase todos os 13 discos de estúdio dos Beatles são representados. Fica evidenciada a diversidade no escopo musical do quarteto de Liverpool, desde os primórdios do grupo com a inocência de <i>Love Me Do</i>, passando pela psicodelia dos anos 1960 no caos circense de <i>Being For The Benefit Of Mr. Kite</i>, de <i>Sgt. Pepper s</i> (1967), até as composições mais sofisticadas como o medley derradeiro do álbum <i>Abbey Road</i> (1969).

Como de praxe, as homenagens aos falecidos ex-parceiros de banda não poderiam faltar. George Harrison aparece nos telões em <i>Something</i>; já a presença de John Lennon é sentida em dois momentos: em <i>Here Today</i>, em que Paul tece uma declaração de amor ao seu melhor amigo, e depois em <i>I ve Got a Feeling</i>, onde público se emociona ao ver e ouvir um trecho do último show dos Beatles, no telhado da Apple em 1969, com Lennon assumindo os vocais no final da canção – momento catártico que só foi proporcionado graças à tecnologia de IA usada pelo diretor Peter Jackson na série <i>Get Back</i> e na música nova dos Beatles, <i>Now and Then</i>.

Ficou faltando, no entanto, uma menção ao guitarrista Denny Laine, dos Wings, que morreu na última terça-feira, 5. Outro deslize de Paul foi ter cortado três canções do setlist, uma delas sendo <i>You Never Give Me Your Money</i>, aguardada pelos beatlemaníacos.

O público paulista não era dos mais animados, mas se mostrou participativo em <i>Hey Jude</i>, com coro uníssono nos "Na Na Na", nos refrões de <i>Ob-La-Di, Ob-La-Da</i> e para iluminar a arena enquanto Paul invocava sua mãe Mary naquela música que arranca lágrimas de todo mundo, <i>Let It Be</i>.

<i>Yesterday</i>, a canção mais regravada da história, talvez seja a ausência mais sentida no repertório, por mais que a balada não apareça nos sets do cantor há alguns anos – fato que só prova a força de seu catálogo triunfal e inigualável, que ainda exclui dezenas de hits como <i>Penny Lane, Mull of Kyntyre, My Love</i> e tantos outros.

A maratona de 36 canções termina de forma poética: "e no fim, o amor que você dá é igual ao amor que você recebe", arremata Paul em <i>The End</i>, antes de fechar as cortinas do maior espetáculo da Terra.

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