No teatro, a primeira palavra dita em cena é uma espécie de chave para um mundo que ainda não se conhece. A maneira como é pronunciada, a quem se dirige, do que trata: está ali como um mapa para o espetáculo que virá a seguir. Em Se Eu Fosse Iracema, a atriz Adassa Martins rompe o silêncio inicial com signos incompreensíveis. Frases em alguma língua indígena, um discurso do qual nada se apreende.
A escuridão é quase completa. Na penumbra, apenas uma faixa tênue de luz corta o palco na horizontal e põe em evidência os olhos da intérprete. Nesses minutos iniciais, o espectador não ouve nem vê nada de reconhecível. Apenas sombras, um corpo disforme, à semelhança de Abaporu. Está a caminhar no território da alteridade radical. Quem é o índio? O que é?
Em 2012, a etnia guarani-caiová divulgou uma carta em que pedia que se decretasse sua morte coletiva. A peça partiu daí. O fato, à época, gerou alguma comoção nas redes sociais, certa dose de espanto. Uma das raras situações em que essa gente exótica aparece nos noticiários. Um índio queimado por adolescentes em Brasília, um menino índio degolado em uma rodoviária. A gente se lembra de ter ouvido essas histórias e depois esquece.
As primeiras palavras em português pronunciadas pela intérprete têm ar de manifesto. “Um homem branco vale mais do que um homem de qualquer outra cor.” Mas esse monólogo se põe a ampliar – ao limite do paroxismo – o que poderia soar mera frase de efeito. É uma mulher branca quem fala. A confusão entre imagem e discurso é um dos recursos usados pela direção de Fernando Nicolau para embaralhar convicções.
Indicada para o Prêmio Shell do Rio, por sua atuação, Adassa Martins se transmuta em muitas figuras: é uma criança, um pajé, uma índia que viu o pai ser espancado e foi expulsa de suas terras. A atriz empresta força, veracidade e veemência a cada um desses relatos. É notável como transforma a voz, como domina o corpo para dar-lhe outras formas. Mas o brilho não se restringe à representação, está na forma como impõe sua presença. Adassa não se traveste. Evidencia a pele branca, o olhar branco. E não nos deixa esquecer: é uma estrangeira. A dizer de dores que não são suas. Mas são. A dizer de um eu que é um outro.
Uma peça que trata da questão indígena – dirão muitos quando instados a resumir Se Eu Fosse Iracema. A sentença é tão verdadeira quanto imprecisa. Nessa criação, se está a falar, sobretudo, de visões hegemônicas, de olhares parciais e excludentes sobre o mundo, de estereótipos que se perpetuam. O Brasil, o país do futuro, à espera de um destino glorioso que nunca se realiza.
A dramaturgia de Fernando Marques reflete sobre compaixão, empatia, identidade, justiça e direitos; entremeia trechos da Constituição federal a narrativas e lendas. Vai contando do que somos sem saber: seres forjados por atrocidades, doçuras, belezas e violências indizíveis.
São sumárias as indicações cenográficas: um tronco de árvore cortado, um único figurino que se restringe a uma saia de borracha. Uma economia de meios que dialoga com a bem urdida iluminação do espetáculo. Com o auxílio de precisos feixes e faixas de luz, Adassa Martins virá desenhar seus personagens e criar atmosferas.
Os ambientes de luz e sombra contam dos lugares pelos quais a obra passeia. Elegem o claro para a contundência do discurso, a penumbra para os enlevos poéticos.
É tempo de um teatro político de outra natureza, distante do discurso pedagógico que pautou as criações, por exemplo, do Teatro de Arena e de seus autores. Um impulso ético e transformador embala algumas das melhores criações das últimas temporadas e Se Eu Fosse Iracema se une a essa boa safra. Não dá prioridade à mensagem em detrimento da estética; tem convicções, mas não certezas. Cada espectador sai de lá sozinho, com um gosto amargo na boca e sem o amparo de palavras conciliadoras.
SE EU FOSSE IRACEMA
Itaú Cultural. Avenida Paulista, 149, telefone 2168-1776.
2ª e 3ª (dias 1º e 2/5), às 20h. Grátis
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.