Alfonso Cuarón conversa pelo telefone com a reportagem do jornal O Estado de S. Paulo. Admite que até agora, por mais reconfortante que seja, ainda tem certa dificuldade para acolher o sucesso internacional de público e crítica de seu novo longa, RomaRoma ganhou o Leão de Ouro em Veneza, está indicado em várias categorias do Globo de Ouro e, com toda certeza, irá para o Oscar – que Cuarón já recebeu, o de direção, por Gravidade, em 2014. Qual é a dificuldade do autor para assimilar essa acolhida triunfal?
“É meu filme mais pessoal. Tem muito de autobiográfico, também, e eu tenho a impressão de que toda a minha vida e carreira foi uma preparação para chegar aqui. A partir de um momento, dei-me conta de que tinha de contar essa história, liberar-me dos meus fantasmas. Mas tanto quanto o filme era necessário para mim, eu duvidava que pudesse interessar aos outros. Cheguei a comentar com meu irmão que muito provavelmente ninguém iria vê-lo. Foi realmente uma grande surpresa, uma catarse, receber aquela ovação em Veneza. E, logo em seguida, o Leão. Meu filme mais pessoal tocou as pessoas, tornou-se universal, e isso não tem preço. É uma coisa que me emociona profundamente.”
Roma não tem nenhuma vinculação com a capital italiana. É o bairro de classe média da Cidade do México em que Alfonso cresceu. O filme é dedicado à doméstica que o criou, e que inspirou a personagem Cleo, interpretada por Yalitza Aparicio. “Num sentido mais amplo, é um filme sobre e dedicado às mulheres que forjaram o homem que sou.” Sendo um projeto tão pessoal, Cuarón abriu mão de muitas parcerias e colaborações. “Senti que tinha de escrever sozinho, dirigir, manejar a câmera, até montar. Pode parecer uma coisa megalomaníaca, mas como estou operando no registro das lembranças, da memória, senti que não podia dividir isso com ninguém. Era como eu via, como me lembrava das coisas. Decidi que tinha de filmar exatamente nos locais, e a Netflix, que se tornou parceira desde a primeira hora, apoiou minha decisão. O problema é que, quando chegavam aos locais, eles haviam mudado muito, ou nem existiam. Tive de reconstruí-los, e a Netflix continuou parceira.”
Qual é o sentido de fazer com imagem e som de ponta – câmera de 65 mm, som digital multicanal – um filme que o público massivo vai ver em outras plataformas? “Por isso, desde o contrato, tratei de me assegurar de que Roma teria lançamento simultâneo em salas. Tem gente que acha que fiz isso somente de olho no Oscar, mas como, se era um projeto tão arriscado que eu não tinha distanciamento de pensar sequer como poderia sair, se é que ia sair? Depois da repercussão em Veneza, a Netflix chegou a ampliar as salas. Fiquei muito feliz.” Roma não é só a história de uma família, pelo ângulo da doméstica Cléo.
A família implode, pai e mãe separam-se. Para Cuarón, essa história é também do México. Mistura o público e privado. Um célebre massacre, reconstituído nos mínimos detalhes. “Não faria sentido não dar esse testemunho. Sou um produto de tudo isso.” Algumas cenas já entraram para a história – o massacre, o salvamento no mar.
Entrevistada pelo jornal O Estado de S. Paulo, Yalitza Aparicio já disse como foi feita a segunda. Agora, quem conta é o diretor. “Filmamos numa enseada e com grande risco, apesar de toda as precauções, porque Yalitza não sabia nadar. Houve uma tormenta tropical na região, que deixou o mar mais revolto. Pior – danificou a grua, na qual estava a câmera. Filmamos mais de uma vez, sem nunca saber se ia dar certo. Os deuses do cinema ajudaram. É um filme que poderia ter saído todo errado. Só o que ouço das pessoas é o oposto.”