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Percival de Souza: “A tragédia humana atrai a atenção”

Em 40 anos de profissão, o jornalista Percival de Souza avalia a reportagem policial e não tem dúvidas de que o povo gosta mesmo é de notícias ruins

O jornalista Percival de Souza pode ser considerado "patrimônio tombado" da imprensa brasileira. Ele é um dos grandes nomes da reportagem policial no País. Em seu currículo como repórter, casos de grande repercussão. Um dos últimos foi o da garota Isabela Nardoni. Aliás são os casos envolvendo crianças que o deixam muito mal, apesar da vasta experiência na área.

Nascido em 17 de outubro de 1943 em Braúna, interior de São Paulo, Percival de Souza, apresentador e comentarista da Rede Record, também é escritor. Até o momento são 18 livros publicados, entre eles "Autópsia do Medo", "Eu, cabo Anselmo", "O Sindicato do Crime", "Narcoditadura", "O Crime quase Perfeito", "A revolução dos loucos", "Society Cocaína", "O Prisioneiro da Grade de Ferro" e "Receitas de Vida".

Em 40 anos de jornalismo, já trabalhou na revista Quatro Rodas, colaborou para a Veja, IstoÉ e Época, e ganhou os prêmios Esso e Vladimir Herzog.

São Paulo é hoje um terreno fértil para a reportagem policial?

PERCIVAL – A área criminal permite que se veja a sociedade por uma espécie de imaginário e sociológico buraco da fechadura. Com perspicácia e sensibilidade, assistimos a um desfile diário de todos os tipos humanos, numa gigantesca passarela, que em vez de "fashion" usa os nomes de "delegacia", "polícia", "fórum" e "prisão". Ou seja, protagonistas de um fantástico laboratório de comportamento humano. É "crime e castigo", na perspectiva de Dostoievski, é a tragédia shakespereana, é Nelson Rodrigues. O terreno é fértil, mas atempo movediço. Pode tragá-lo.

Como a reportagem policial se distingue de outras áreas do jornalismo?

PERCIVAL – Ela exige que se perca por completo a ingenuidade, porque você lida com pessoas que mentem, fraudam, tergiversam, procuram justificar atos torpes. Por consequência, culpados e inocentes estão no seu caminho, é preciso saber distingui-los. Por outro lado, você adquire uma percepção diferenciada, espécie de sexto sentido, para definir quem merece crédito ou não, para você construir, elaborar uma história. Isso não está escrito em lugar nenhum. Mas está no dia-a-dia.

O termo "jornalismo investigativo" não seria um pleonasmo?

PERCIVAL – Não, porque se é assim na área criminal e deixa a desejar nas outras, o problema seria das outras áreas e não da criminal. Isso em tese, porque nas outras áreas também se faz o investigativo. A questão é outra: o jornalismo bem feito, matérias bem apuradas e redigidas. Os teóricos sobre "pleonasmo" se esquecem que os jornalistas investigativos possuem até uma associação, cujos membros, por óbvio, não são cultores do pleonasmo. Talvez provoquem ciúmes. Além disso, o Brasil contemporâneo deve muito ao jornalismo de investigação.

As reportagens investigativas estão cada vez mais escassas?

PERCIVAL – Não. É certo que se exige mais tempo e espaço e isso tem um custo. Mas preste atenção nas edições dominicais dos grandes jornais. São os dias de maior tiragem e de matérias de maior densidade, cadernos culturais e aprofundamento de assuntos. As revistas semanais também apresentam um peso significativo e, aliás, não raramente obrigam os jornais e a TV a citá-las. A questão a ser respondida: por que matérias mais fortes só aos domingos? Por que as revistas semanais se destacam?

Sente saudade das grandes reportagens?

PERCIVAL – Considero a reportagem a alma do jornalismo. Mas devemos ter uma visão macro. Recentemente, fiz parte da Comissão Julgadora do Prêmio Esso de Jornalismo, o "Nobel" da imprensa brasileira. Descobri, então, que excelentes trabalhos são elaborados fora do eixo Rio-São Paulo. Premiamos um jornal de Pernambuco com uma série de matérias que usou como "gancho" o centenário da morte de Euclides da Cunha e reconstituiu a saga de Canudos. Um trabalho primoroso. Ao premiar uma matéria, você alija outras, excelentes. Digo isso como um testemunho: tem muita coisa boa sendo feita por aí.

Em quê a tecnologia ajuda e prejudica o dia-a-dia de um repórter?

PERCIVAL – Repórter que não sai da redação não é exatamente um repórter. Repórter sem fontes, então, não existe. Isso é pragmático, mas correto. A tecnologia ajuda, mas é preciso inserir a alma humana na memória do computador. Não existe repórter-dinossauro ou moderninho. Existe repórter – se for bom, melhor…

Faltam bons repórteres de polícia?

PERCIVAL – Faltam bons repórteres. A reportagem é uma técnica – existe a fórmula de identificar uma fonte, abordá-la, convencê-la a falar. Um olho no olho não será substituído, jamais, por telefonema ou e-mail. O bom repórter precisa ser preparado, treinado, capacitado, lapidado, aprimorado.

O povo gosta mesmo de notícias ruins? Isso explicaria a audiência de programas sensacionalistas?

PERCIVAL – Sensacionalista é o que provoca sensação. A tragédia humana atrai a atenção, sim, e ela é a matéria prima essencial nas atividades de juiz, promotor, advogado. Ninguém diz que esses profissionais são "sensacionalistas". Curioso, não? Mas essa questão deve ter o foco da uma espécie de assepsia seletiva, um certo requinte ao apresentar um fato criminal, repleto de nuances, para não resvalar no antiético ou abraçar o mau gosto. São circunstâncias pontuais.

Alguma notícia consegue te chocar?

PERCIVAL – A que envolve crianças. Chorei com Isabela Nardoni. Uma menininha de cinco anos, que sofreu muito antes de morrer. No fundo, torcia para que a acusação não fosse verdadeira. Usei todo o meu know-how criminal nessa cobertura – investigação, perícias, laudos minuciosos, cotejo de depoimentos, observação atenta de cada personagem, furos. Cobri toda a reconstituição do crime. Na manhã seguinte, internei-me na Beneficência Portuguesa para uma cirurgia delicada de substituição da válvula mitral. No hospital, pensavam que isso aconteceu por causa da Isabela. Não sei de onde tirei forças para esse ritmo. Melhor dizendo: sei. Deus me deu a força.

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