Enquanto atendia a um aluno na sala vazia de Redação Jornalística, no campus da UFMS, em Campo Grande, eu tentava acompanhar o que fazia minha filha Rafaela, então, com quatro anos de idade. Pequenina, ela se movimentava em silêncio por detrás da mesa do professor onde me instalara. Por alguns segundos, me esqueci dela, ao me despedir do aluno. Depois, alcancei-a, estendi-lhe a mão, e, já nos encaminhávamos para a porta de saída, quando, por um enraizado hábito profissional, voltei os olhos na direção do quadro negro, preocupado em deixá-lo limpo. E me surpreendi com uma palavra escrita nele por ela: “Sowado”. Não sabia que a Fá, como gosto de chamá-la, começara a manejar as letras. Por isto me surpreendi, e, depois, me emocionei ao perceber que ali havia uma tentativa de escrever meu nome. Li para ela o que tinha deixado na lousa. E ela se divertiu muito com aquela palavra nova. Depois, por vários anos, brincaria com ela, nas despedidas: “Beijo, Sowado”.
Desde aquela fase, Rafaela preservou sua capacidade de descobrir encantos desconhecidos em detalhes de sonoridades, cenas e paisagens ignorados por outras pessoas. Ainda estava nos seus quatro anos de idade e já tinha os ouvidos massacrados pelas músicas que os meios de comunicação de massa queriam impingir às crianças. Com letras do tipo: “Uni, duni, tê”. Um dia, ficamos perplexos. De sua vozinha fraca saíram estes versos: “Mulheres cabeças e desequilibradas/ mulheres confusas”. Era evidente que se impressionara com a expressão “mulheres cabeças” usada por Martinho da Vila. Talvez a associasse a mulheres “só com” cabeças, como as esculpidas nas proas dos barcos do Rio São Francisco.
Hoje, ela tem 24 anos. Mas, muito antes de chegar a esta idade, passou a mostrar como enxerga o mundo e as pessoas através de fotos – publicadas e inéditas – algumas reunidas no espaço Rafaela Coimbra do flickr.com. Juntas, estas imagens se inserem naquele universo dos “detalhes deslumbrantes” que os poetas encontram sob a suposta banalidade do cotidiano. Como o triste pouso do urubu na torre de uma igreja jesuítica da Amazônia; os cadeados molhados pela chuva no portão do Cemitério de São Paulo; a inesperada simetria num estacionamento de bicicletas de Barcelona.
E, ainda, as pedrinhas marrons do piso de uma praça de Buenos Aires que emolduraram as flores dos tênis que ela calçava. Nesta foto, seus pés, levemente enviesados, revelam algo imposto por herança genética (secreta vaidade do pai).