Crisálidas (1864) foi o primeiro livro de poemas de Machado de Assis – mas quase não foi. Duas notas publicadas no Correio Mercantil em 1858 e em 1860 e um anúncio veiculado no Correio da Tarde também em 1860 mostram que ele se preparava para lançar O Livro dos Vinte Anos. Essa informação, descoberta agora pelo professor Wilton Marques, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e divulgada com exclusividade para o jornal “O Estado de S. Paulo”, nunca foi incluída em suas biografias, e especialistas contemporâneos dizem nunca ter ouvido falar no tal livro de poemas.
Tudo começou com uma outra descoberta. Marques era o orientador da aluna Mayra de Souza Fontebasso quando ela encontrou três poemas inéditos de Carlos Drummond de Andrade que saíram na Revista Raça, em 1929, e que vieram à tona em novembro do ano passado. O professor quis, então, escrever um livro sobre esses textos, mas achou que precisava ampliar sua pesquisa para dar corpo à obra.
Iniciou, assim, uma investigação sobre a presença de literatos em jornais. Estava debruçado sobre os arquivos do Correio Mercantil na Hemeroteca Digital Brasileira, lendo os textos de Macedo, Gonçalves Dias, Manuel Antonio de Almeida, José de Alencar e Machado de Assis, quando se deparou com a seguinte nota na primeira página: “Mais um volume de versos se anuncia, e podemos já dizer mais um poeta se vai revelar. Modesto e muito jovem são, além de felizes inspirações, qualidades bastantes para recomendarem o nome do Sr. Machado de Assis, autor do livro cuja publicação se nos anuncia”. Machado era, então, um garoto de 19 anos.
Um ano e meio depois sem que nada tivesse ocorrido, outra menção ao volume, em janeiro de 1860. Agora, com mais detalhes: “Vai publicar-se uma coleção de versos com o título de Livro dos Vinte Anos. O autor é um moço que enceta apenas a carreira das letras. Talento viçoso e original, o Sr. Machado de Assis promete mais um poeta e um prosador distinto no país. Nas poesias ligeiras ou ensaios de prosa que tem publicado até hoje, revela o Sr. Assis qualidades notáveis que recomendam o seu nome. O público receberá sem dúvida o seu livro como merece o talento do autor, que tem tanto de real como de modesto. Na atualidade é uma associação rara”.
Lá se vai mais um mês e um anúncio no Correio da Tarde traz novidades mais concretas. Ele diz: Livro dos Vinte Anos por Machado de Assis. Um volume de 200 a 240 páginas; 2$. Assina-se nas lojas de costume e na tipografia do Sr. Paula Brito, onde é impresso.
E, então, fez-se um silêncio que dura até hoje, 156 anos depois. Por que o livro nunca foi lançado? O número de assinantes não foi suficiente para bancar a impressão nesta espécie de crowdfunding do século 19? Machado não gostou do resultado do trabalho? Brigou com o editor? Por que nunca se falou nesta obra?
Wilton Marques fica com a hipótese da consciência literária em Machado e da mudança de interesse. “Tem uma expressão de Jean Michel Massa que diz que Machado tinha uma autocrítica vigilante muito forte. Exigia muito do texto na busca de um comprometimento com o dado estético, com a formalidade do texto literário. E por isso ele jogava muita coisa fora”, comenta o professor. Vale lembrar que quando organizou Poesias Completas (1901) – porque, como disse em carta ao editor Garnier, queria deixar esta obra como sua bagagem poética -, ele excluiu muitos poemas de outros títulos que ele mesmo tinha organizado. “Esse exercício de autocrítica é muito forte e mais um indício de que ele abandonou o livro.”
Fora isso, Marques diz que os poemas do Livro dos Vinte Anos seriam da fase romântica de Machado – e ele discordava de seus ideais. E que àquela altura o autor estava totalmente dedicado ao teatro – foi com peças, aliás, que ele estreou na literatura.
A hipótese de que os poemas do malogrado livro, como o professor escreve do artigo que será publicado na revista Machado em Linha até dezembro, tenham sido incluídos em títulos posteriores também está fora de cogitação. Ele lembra que o escritor datava seus textos e em Crisálidas (1864), por exemplo, só um dos poemas é de antes de 1860.
José Luiz Passos, escritor, professor de literatura brasileira da Universidade da Califórnia (Ucla) e autor de Machado de Assis: Romance Entre Pessoas, não conhecia essa referência, mas imagina que o livro talvez não tenha valido a pena para Machado, e, por isso, ele teria abortado a publicação. “Às vezes, ele apostava numa capacidade de produção muito maior que as condições reais que ele tinha de execução”, comenta Passos.
Isso, sem contar com o compromisso e a tentativa de agradar – neste caso, mais tarde – a seu editor Garnier, para quem prometeu, e nunca entregou, O Manuscrito do Licenciado Gaspar e Histórias de Meia-noite. Passos comenta também sobre um libreto de ópera que ele teria escrito, mas que nunca apareceu.
“Esses livros não realizados são mais um exemplo da capacidade de produção imaginativa dele, dessa ambição de colocar para fora, de publicar cada vez mais”, diz. E como boa parte de sua produção era em jornais, o professor acredita que ainda há muito a ser revelado. “A cada vez que se organiza uma coletânea dos contos de Machado, sempre aparece algum texto – principalmente porque ele também escrevia sob mais de 20 pseudônimos”, explica.
Passos, no entanto, não conhece tantos anúncios da natureza dos encontrados por Wilton Marques. “Esse Livro dos Vinte Anos foi uma surpresa e é mais uma evidência de alguém que está tentando tudo – de contratos com editores a colaboração em periódicos.” E Machado tinha ambição. Segundo o professor, ele queria ser um autor clássico. “Ele se coloca ao pé dos grandes e não faz literatura de ocasião.” Mais um motivo para se livrar dos poemas românticos?
O crítico Silviano Santiago, que acaba de entregar o manuscrito de Machado, romance sobre os últimos quatro anos de vida do escritor, também nunca ouviu falar do livro. “Mas como Carlos Drummond que não publicou o manuscrito que enviou em 1925 a Mário de Andrade, e esperou 1930 chegar para publicar o volume Alguma Poesia, Machado também deve ser elogiado por não ter tido a coragem de publicar esse livro. Realmente, ambos os escritores não começam bem em matéria de escrita poética. Pensando nesse tipo de carreira literária é que talvez se possa entender melhor a célebre alegoria de Machado, que começa por dizer que “Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, etc.”, comenta.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.