As artes perderam o homem que por mais de meio século foi para música erudita uma de suas maiores e mais controversas personalidades. Pierre Boulez, compositor e maestro francês de 90 anos, morreu na terça-feira, 5, em Baden-Baden, na Alemanha. O anúncio de seu desaparecimento só foi feito nessa quarta, 6, em uma declaração conjunta de sua família e da Filarmônica de Paris. Compositor de vanguarda, figura de proa do século 20, foi um dos mais influentes artistas de seu tempo.
Boulez faleceu na cidade que adotou após “exilar-se” de Paris, de onde preferiu escapar das brigas e disputas que mantinha – e nas quais mergulhava – com as autoridades das principais instituições de música erudita da França. Ainda à distância, o maestro sempre foi reconhecido como o senhor da paisagem da música erudita na segunda metade do século 20, sem rivais à altura em seu país.
Nascido em 1925, em Montbrison, cidade de 15 mil habitantes situada a 450 quilômetros ao sul de Paris, Boulez era leitor voraz – em sua biblioteca havia de Diderot e Proust a Kafta e Joyce – e desde cedo demonstrou amor pelas artes. Começou sua formação musical pelas mãos de Olivier Messiaen, inspirador de gerações de compositores e regentes da França. Embora reconhecesse em seu mestre uma influência decisiva, discordava das virtudes da pedagogia e se considerava um autodidata, revelando desde cedo um caráter pronto para o confronto. “Quando ele entrou na classe pela primeira vez, foi muito gentil. Mas logo demonstrou sua cólera contra o mundo inteiro”, lembrou Messiaen, brincando com o discípulo e amigo com o qual dividiu os louros.
Seu talento como compositor e regente foi reconhecido desde muito cedo. Aos 20 anos, tornou-se diretor musical da companhia Renaud-Barrault, no Théâtre de Marigny, um dos mais tradicionais de Paris. Em 1954, fundou na casa os Concerts du Petit Marigny, tornando pública a ambição de enfrentar o que considerava o atraso da França na música moderna.
Então, já havia composto obras de referência do movimento vanguardista, como Notations, em 1945, Le Soleil des Eaux, em 1950, e Le Visage Nuptial, em 1951, seguidas de Le Marteau sans Maître, de 1955. Deixou um legado com mais de 30 obras, em parte das quais estudou as possibilidades de transformação do som pela eletrônica – um de seus objetos de experiência e de estudos permanente.
Compositor moderno nem sempre acessível e palatável, ganhou notoriedade por chacoalhar os códigos clássicos da harmonia e inventar uma nova forma de escrever música erudita, ampliando o conceito original da música dodecafônica por meio do serialismo integral. Mas foi na condição de chefe de orquestra que seu nome foi catapultado ao estrelado do gênero em todo o mundo. Boulez foi, por exemplo, o maestro escolhido por Wolfgang Wagner, neto de Richard Wagner, para as homenagens do aniversário da morte do compositor alemão.
A seu talento como maestro, sua precisão e seu preciosismo, aliava-se seu gestual atípico – Boulez regia sem batuta -, o que também lhe valia críticas. “Se nos contentarmos com uma espécie de gesto mecânico, o som não sairá”, argumentou. “É preciso cuidar da mistura, do amálgama de ao menos uma geometrização e uma relação com a sonoridade.”
Ao longo de sua carreira, Boulez foi um músico solicitado pelas maiores orquestras do mundo, como as de Berlim, de Viena e de Londres, na Europa, e de Chicago e Cleveland, nos Estados Unidos. Fora da França nos anos 1950, foi, por exemplo, chefe permanente da Orquestra Sinfônica da BBC entre 1971 e 1975, período no qual também foi diretor musical da Filarmônica de Nova York. Logo depois seu gênio foi reconhecido em Paris ao tornar-se o primeiro músico da história a ser nomeado ao prestigioso Collège de France, onde ministrou entre 1976 e 1995 cursos sobre sua arte e também sobre a arte de outros grandes mestres da música erudita mundial.
Em 1995, deixou a instituição para se dedicar à criação da Cité de la Musique e para lutar pela construção da Philharmonie de Paris, inaugurada, enfim, em 2015 – sem que Boulez, já doente, pudesse se deslocar para o evento. Em nota, a família e a direção do novo templo da música erudita francesa prestaram ontem homenagem a seu grande incentivador. “Para todos os que com ele conviveram e que puderam apreciar sua energia criativa, sua exigência artística, sua disponibilidade e sua generosidade, sua presença permanecerá viva e intensa”, disse o texto.
Prova de que sua influência internacional permanecia intacta, apesar de Boulez estar retirado da cena artística, o anúncio de sua morte foi lamentado dos dois lados do Atlântico. “Espírito crítico temível, professor do Collège de France, ele não cessou de repensar as disciplinas, fazendo dialogar a pintura, a poesia, a arquitetura, o cinema e a música, sempre a serviço de uma sociedade mais humana”, afirmou o presidente da França, François Hollande. Nos Estados Unidos, o jornal The New York Times informou sua morte classificando o compositor e regente francês como “uma figura dominante na música clássica por mais de meio século”.