O corpo em suas diferentes manifestações – política, sexual, afetiva, religiosa – ocupa toda a “retroperspectiva” que o pintor paulistano Alex Flemming, 62, abre neste sábado, 13, no segundo andar do Museu de Arte Contemporânea (MAC). O neologismo é justificável, explica o artista, que mora há mais de 20 anos em Berlim: retrospectiva não se aplica a uma mostra distante do formato consagrado pela visão positivista do modernismo – que acreditou numa evolução linear da arte. A exposição se projeta para o futuro. Literalmente. A última série exibida na mostra é também o ponto final do pintor e dos espectadores: ela reúne seis dezenas de laptops pintados com nomes de amigos, como se fossem lápides de um cemitério, nossa última morada.
Não se trata de um exercício mórbido, mas do reconhecimento que também a obsessão que Flemming tem pelo corpo um dia vai acabar. Em pó. Enquanto isso, ele celebra a beleza desse corpo – seja masculino ou feminino. Flemming expõe sua escancarada sensualidade em 120 obras (pinturas, objetos, gravuras).
Autor da intervenção visual na estação Sumaré do metrô, realizada em 1998 com retratos de anônimos estampados em placas de vidro, Flemming já explora a temática do corpo há quase 40 anos. Uma das séries mais antigas da exposição, que tem como curadora a professora e ensaísta Mayra Laudanna, trata do corpo político em plena ditadura. O título Natureza Morta (1978) alude à tortura de presos políticos durante o regime militar, no ano em que a Justiça responsabilizou a União pela morte do jornalista Vladimir Herzog (1937-1975) nas dependências do DOI-Codi.
Como tudo na obra de Alex Flemming é autobiográfico, também nessa série ele se coloca no lugar dos torturados. Em outras, ele pinta suas roupas (íntimas, inclusive), a valise que o pai comandante usava em suas viagens, sapatos velhos e até um divã (todos os seus móveis em Berlim também são pintados). Ou usa seu retrato no lugar do rosto do Cristo ou de Verônica, a santa do sudário, sem que isso lhe pareça uma atitude blasfema. Crente a seu modo, ele diz detestar a religião institucionalizada, fazendo uso sincrético de ícones católicos e da umbanda em pinturas de uma série que coloca lado a lado Santa Cecília, Iemanjá, São Jorge e uma sereia.
Ainda nessa série de corpos míticos, ele insere um Adonis sem roupa no interior de um ostensório, objeto usado para expor e transportar a hóstia consagrada em cultos da Igreja Católica. Não por provocação, como fazia seu amigo León Ferrari, garante o pintor. “Se o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, por que não comemorar essa beleza?”, pergunta Flemming com inocência pagã.
Essa criatura, como o homem vitruviano de Da Vinci, é um ser de corpo perfeito, celebrando a descoberta das proporções matemáticas do ser humano pelo pintor renascentista. Esse homem, símbolo da simetria que rege o universo, é construído e desconstruído por Flemming em séries como Body Builders (2001/2) em que corpos modelados nas academias servem de suporte de mapas territoriais de zonas de conflito, apontando para o paradoxo do mundo contemporâneo, que constrói um corpo e destrói o espírito.
O pintor argumenta que essa relação o distancia das fotografias de corpos nus masculinos por outro obcecado pelo físico, o norte-americano Robert Mapplethorpe (1946-1989). “A nudez de Mapplethorpe é clínica”, diz. “A grandeza dele está na temática”. Flemming, que morou em Nova York com uma bolsa da Fullbright, em 1981, já explorava o tema dos conflitos sociais e as paixões, mas o fazia desconstruindo o corpo. Exemplo disso é uma série iniciada em 1984, ao voltar dos EUA, que explora, por meio da alegoria, as deformações do corpo.
Alguns exemplares da série estão expostos na mostra do MAC. Um deles junta a parte superior da Vênus de Botticelli com os membros inferiores de Adão e Eva da Expulsão do Paraíso de Cranach, forjando uma criatura monstruosa de quatro pernas, como nas xilogravuras do naturalista italiano Ulisse Aldrovandi (1522-1605). Aldrovandi, que inventou seres híbridos, metade humanos e metade bestas, não é, contudo, sua única referência. Flemming também leva a Olympia pintada por Manet para um leito de hospital, mas ela, nua, não emana erotismo, e sim o fim de um ciclo (artístico, inclusive), respirando com a ajuda de aparelhos.
Para Flemming, vida e morte são indissociáveis. Isso explica a presença de sua Olympia entubada na última sala da exposição, que abriga a série Caos, projeto agora retomado – como em outros casos, em seu tratando de uma obra circular, que sempre volta ao tema do corpo. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.