É normal que não exista muita expectativa para <i>A Noite das Bruxas</i>, novo filme baseado no universo da escritora Agatha Christie e sob a batuta do cineasta Kenneth Branagh. Seus dois trabalhos anteriores nesse universo, com <i>Assassinato no Expresso do Oriente</i> e <i>Morte no Nilo</i>, não funcionaram e deixaram um gosto amargo na boca. No entanto, em sua terceira empreitada, as coisas finalmente entram no prumo com a produção mais madura.
Aqui, o detetive Hercule Poirot (Branagh) começa a trama cansado, sem vontade de trabalhar. Está exilado em Veneza, na Itália, onde pessoas fazem fila na porta implorando para que ele solucione casos aparentemente impossíveis. Mas nada faz com que ele volte ao trabalho.
Até que Ariadne Oliver (Tina Fey) entra em cena e implora para que ele participe de um último caso: a misteriosa morte de uma jovem, encontrada num dos canais da cidade, e que morava em uma casa aparentemente assombrada.
<i>A Noite das Bruxas</i>, como o título em português já sugere, é o mais diferente de todos os filmes até agora – afinal, está longe de ser um mistério de descoberta do criminoso para ser algo mais, com toques de terror. É Agatha Christie colocada em um tipo de leitura inédito até o momento.
<b>Erros e acertos</b>
Em termos de estrutura, o roteiro de Michael Green (de pérolas como <i>Logan</i> e <i>Blade Runner</i> 2049, mas também do criticado <i>Lanterna Verde</i>) segue a estrutura convencional das tramas da escritora inglesa. Somos apresentados para um caso, depois mostram quem são os possíveis culpados e, no final, descobrimos quem está por trás de tudo em uma grande e surpreendente revelação. É um formato que existe há décadas – e já cansou um pouco.
A grande surpresa fica com a direção criativa e ousada de Branagh. Ele adota um pouco de sua experiência shakespeariana no teatro inglês e a coloca em prática aqui: confinados dentro dessa possível mansão mal-assombrada no meio dos canais de Veneza, durante uma forte tempestade, as tramas de traição e loucura apimentam o que surge na tela.
A câmera do cineasta inglês, geralmente mais estática e sem muita graça, ganha nova vida mesmo tendo o diretor de fotografia de sempre, Haris Zambarloukos.
As sombras são usadas para chocar e espantar, criando uma sensação constante de confinamento e de que há algo à espreita. Há até algo de Alfred Hitchcock aqui, na forma como Branagh assusta a audiência com pássaros – nunca achei que pularia de susto com uma cacatua.
Fica a sensação de que o cineasta se libertou de alguma amarra, de algo que o prendia em uma filmagem seca, sem graça. Ele entende, finalmente, que o segredo não está no elenco (que tem grandes nomes, como Michelle Yeoh e Jamie Dornan, mas fraco comparado aos outros), mas sim na forma como entrega a história: criando clima e gerando forte tensão.
É possível que muitas pessoas achem o filme chato, sonolento, cansativo. E faz sentido: com esse tipo de filmagem, seria interessante um roteiro também mais ousado, criativo. Branagh subiu alguns degraus na qualidade de sua direção, enquanto Green permaneceu na mesma estrutura de sempre, talvez respeitando demais o texto de Agatha Christie – apesar das diferenças gritantes no final. Faltou um pouco mais de molho no texto.
<b>Filosofia</b>
Ainda assim, há boas qualidades na trama. O roteiro reflete sobre a questão da fé e traz alguns diálogos existenciais que não são fáceis de ver em filmes para as massas. Questiona a existência de fantasmas numa condicional de Deus e, assim, nos faz pensar em nossas crenças, ideias e nossos pensamentos. Outro acerto brilhante do filme.
De qualquer forma, A Noite das Bruxas é um suspense maduro, ousado e corajoso, como há tempos não aparecia nos cinemas – ultimamente, lotado de filmes genéricos do gênero, que apostam sempre nas mesmas fórmulas.
Fica a torcida para que Branagh possa encerrar sua saga com <i>Cai o Pano</i>, o último e formidável livro que coloca um fim à história de Poirot. Porém, não há nada confirmado até agora.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>