Os presidentes dos EUA, Joe Biden, e da França, Emmanuel Macron, conversaram na quarta-feira, 22, por telefone e tomaram duas decisões: a volta do embaixador francês a Washington, na semana que vem, e uma reunião em outubro para aparar as arestas entre os dois países. Decisões recentes de Biden, no entanto, vêm agravando a relação entre americanos e europeus.
Bruxelas se queixa especificamente de três medidas. Primeiro, a inclusão dos europeus na lista de turistas vetados nos EUA, mesmo após a União Europeia ter liberado a entrada de americanos. Depois, a decisão de Biden de acelerar a retirada de tropas do Afeganistão sem consultar ninguém, pegando os aliados da UE de calças curtas. Por fim, na semana passada, a venda de submarinos nucleares americanos para a Austrália, dando uma rasteira na França, que tinha um acordo assinado para fornecer submarinos convencionais aos australianos.
"Os europeus perceberam que talvez algumas das políticas de Donald Trump, além dos escândalos e tuítes, não foram uma aberração, mas sinalizaram um afastamento mais profundo entre EUA e Europa", disse Benjamin Haddad, diretor do Centro Europeu do Atlantic Council.
"As expectativas eram muito altas quando Biden assumiu – provavelmente, altas demais, além de irrealistas", disse Carl Bildt, ex-primeiro-ministro da Suécia, em entrevista à BBC. "O discurso dele, a América está de volta, remetia a uma era de ouro em nossas relações. Mas isso não aconteceu."
Segundo Nathalie Loiseau, ex-ministra francesa de Assuntos Europeus, muitos países da UE estavam em "negação". "Eles achavam que era só esperar até que Trump fosse embora e voltaríamos ao velho normal. Mas o velho normal não existe mais", disse. "Espero que isso sirva de alerta para nós."
Durante a abertura da Assembleia-Geral da ONU, esta semana, Charles Michel, presidente do Conselho Europeu, chamou a política externa americana de "desleal". "O que significa a América está de volta? Ninguém sabe. Os princípios básicos de uma aliança são lealdade e transparência. Hoje, sentimos falta das duas coisas", se queixou o belga a repórteres em Nova York. "Pelo menos Trump deixava muito claro que a Europa não importava."
A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, disparou contra Biden em entrevista à CNN, dizendo que o tratamento dado à França era "inaceitável" e afirmando que a Europa aguardava uma explicação. "Há muitas perguntas que precisam ser respondidas", disse. "Um de nossos membros foi tratado de maneira inaceitável. Queremos saber o que aconteceu e por quê. Primeiro é preciso esclarecer isso antes de voltar à vida normal."
Analistas dizem que a crise é mais do que comercial, é de confiança. Diplomatas dos dois lados do Atlântico esperam que ela seja superada em breve, mas afirmam que os atritos têm potencial para causar danos duradouros na aliança com a Europa e ameaçar a frente única que Washington vem tentando construir contra o poder crescente da China.
Thierry Breton, ex-ministro da Economia da França e um dos aliados mais próximos de Macron, disse que, embora grande parte do problema tenha origem no governo Trump, muitos na Europa ficaram decepcionados com a forma com que Biden vem se comportando. Segundo ele, as restrições de viagens para europeus foi o primeiro sinal.
"Com base na ciência, na verdade, somos o continente com maior número de vacinados per capita. Estamos melhores do que todo mundo. E você nos coloca em uma lista com Irã, China e Brasil. Há uma justificativa por trás disso?", disse. "Há um sentimento crescente na UE de que temos de fazer uma pausa, reavaliar tudo antes de anunciar uma nova abordagem, porque os últimos meses têm sido difíceis para nossa parceria e aliança."
Outro ponto de fricção foi o Afeganistão. Os franceses ficaram desapontados quando o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, não incluiu Paris, onde ele viveu por muitos anos, nas suas primeiras viagens oficiais à Europa. E ficaram irritados quando Biden tomou a decisão de retirar as tropas do Afeganistão sem consultar os aliados que haviam contribuído para o esforço de guerra. "Não deram nem mesmo um telefonema", disse Nicole Bacharan, pesquisadora do Instituto de Estudos Políticos de Paris.
Por fim, esta semana, veio o anúncio do acordo militar entre EUA, Reino Unido e Austrália, que fez a França perder um contrato de US$ 66 bilhões – além do orgulho ferido por ver os australianos formando uma panelinha entre os três países anglo-saxões. O chanceler francês, Jean-Yves Le Drian, disse que a decisão era uma "punhalada pelas costas".
A UE tomou as dores da França. Na semana passada, antes do imbróglio com a Austrália, o bloco já havia publicado uma diretriz de política externa que evita confrontos diretos com a China – mostrando que não seguiria cegamente os chamados de Biden. "Os chineses devem estar morrendo de rir com a crise", disse François Heisbourg, analista do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos. "Eles têm a chance de retirar a presença da Europa ao lado dos EUA na região do Indo-Pacífico." (Com agências internacionais)
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>