Nos últimos anos, o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, enfraqueceu o Judiciário, cerceou o trabalho da imprensa e impôs uma série de retrocessos nos direitos civis. A Constituição, alterada para promover valores pró-cristãos e anti-LGBTI, proíbe o reconhecimento legal de transgêneros assim como a adoção de crianças por casais homossexuais. Orbán adotou uma política contra refugiados – chegando ao ponto de negar alimento a requerentes de asilo em campos de transição, forçando-os a deixar o país. O ensino superior é seu mais recente alvo.
Uma legislação, aprovada no final de abril, transfere a gestão das universidades para fundações privadas, que passarão a comandar 11 das 16 universidades públicas do país. A medida afeta 70% dos alunos da Hungria.
O objetivo oficial é "dar mais autonomia aos centros de educação superior, para que eles não sejam afetados por mudanças no poder executivo". Mas, segundo Noémi Hatala, diretora do documentário Juventude Estúpida (Hülye Fiatalság) – Uma história da ocupação da SzFE, que retrata a ocupação promovida por estudantes da Universidade de Teatro e Artes Cinematográficas de Budapeste, a meta é outra.
"É uma tentativa de controle ideológico e de disponibilizar ativos do Estado ao Fidesz (partido nacionalista húngaro), mesmo se o partido perder em 2022. O conselho das fundações é composto quase exclusivamente por políticos e empresários pró-governo", diz Hatala. Os membros podem servir até os 80 anos – e quando um deles morrer ou se aposentar, o substituto será nomeado pelo próprio conselho. Além disso, as fundações serão as gestoras do orçamento – um convite aberto à corrupção.
Atos contra universidades não são novidade para Orbán, que em 2017 criou uma lei para fechar a Universidade Centro Europeia (CEU), financiada em grande parte pelo filantropo húngaro-americano George Soros. A Justiça europeia declarou a lei ilegal, mas a CEU acabou optando por se mudar para Viena, na Áustria.
A Freedom House, ONG americana que promove os direitos humanos e a democracia, aponta a Hungria como um país de regime híbrido, a um degrau do autoritarismo. Com uma oposição em coalizão, a eleição parlamentar de 2022 poderá mudar esse rumo – colocando Orbán, que é o líder do Fidesz e atualmente está em seu terceiro mandato, numa disputa acirrada nas urnas.
"As mudanças implementadas por Orbán representam a construção gradual de um regime autoritário", aponta Boldizsár Nagy, professor do Departamento de Relações Internacionais e Estudos Europeus da Universidade Centro Europeia (CEU, em inglês). Em resposta às acusações de autoritarismo, Orbán acusa os rivais de espalharem "fake news" contra ele.
<b>Oportunismo</b>
Nem a covid-19 passa ao largo da guerra ideológica criada por Orbán. Logo no início, a pandemia foi pretexto para restringir ainda mais a pluralidade política e a liberdade de imprensa – entre março e junho de 2020, o premiê teve o poder de suspender eleições, sessões do Parlamento e prender quem divulgasse informações consideradas falsas ou incorretas.
Ao mesmo tempo em que subfinanciava a saúde pública, que enfrentava falta de leitos, equipamentos e profissionais, a construção de centros esportivos e estádios seguia normalmente. O caos no atendimento foi ignorado pela mídia pró-governo e veículos independentes não podiam entrevistar médicos e enfermeiros sem autorização especial.
Até o início de maio, a Hungria (com menos de 10 milhões de habitantes e quase 790 mil casos), registrava mais de 28.400 mortos, a maior taxa per capita do mundo, com 2.896 mortes por milhão. O país lidera a vacinação na União Europeia, com 23,7% da população totalmente imunizada, mas o assunto não é livre de polêmicas.
A liderança vem da estratégia de compra (além de sua cota da UE) de doses da russa Sputnik V e da chinesa Sinopharm, ainda não aprovadas pela Agência Europeia de Medicamentos.
Questionado sobre a necessidade de aprovação da agência, Orbán criticou o "espírito burocrático" da UE e elogiou a agilidade chinesa. Internamente, assumiu o crédito pela baixa taxa de mortalidade na primeira onda e, quando os números pioraram, disparou contra a oposição, acusando-a de ser contra as vacinas.
<b>China</b>
Os afagos verbais e a aquisição das vacinas chinesas fizeram o presidente húngaro, Viktor Orbán, cair nas graças de Pequim. A crescente influência da China fica evidente no recente acordo, assinado no final de abril, que prevê a construção de um câmpus da Universidade Fudan em Budapeste até 2024. Será a primeira universidade chinesa na União Europeia e o primeiro posto avançado estrangeiro para a prestigiosa escola com sede em Xangai.
A aliança vem após a derrota de Donald Trump nos EUA, ainda que os laços com o americano fossem mais retóricos, sem benefícios práticos – semelhante à situação do Brasil com Jair Bolsonaro, de quem Orbán também é próximo.
O premiê húngaro foi o único chefe de governo europeu na posse do presidente brasileiro em 2018 – que retribuiria a visita em 2020, não fosse a pandemia. Mas seu filho, o deputado Eduardo Bolsonaro, esteve lá em 2019, rasgando elogios a Orbán. Agora, a derrota de Donald Trump não deve enfraquecê-lo.
"Se Joe Biden pressionar por direitos humanos e democracia, como fez com China e Rússia, ele poderá ser usado como o inimigo que quer intervir em assuntos internos de outro país, dando a Orbán a chance de se apresentar como o defensor da pátria, mantendo seu eleitorado unido", analisa Boldizsár Nagy, professor do Departamento de Relações Internacionais e Estudos Europeus da Universidade Centro Europeia (CEU).
A perda do aliado na Casa Branca e a condução questionável da pandemia – ou a desaceleração econômica por ela provocada – não abalaram a popularidade de Orbán. Ele mantém seu eleitorado fiel mesmo com escândalos que incluem investigações por desvios de fundos da UE e generosos financiamentos de fundações aliadas durante a última década.
<b>Disputa</b>
A promessa de uma eleição apertada em 2022 é fruto de uma inesperada unidade da oposição. Em dezembro, uma frente de seis partidos – Jobbik, Momentum, Partido Socialista Húngaro (MSZP), Coligação Democrática (DK), Partido Verde (LMP – A Política Pode Ser Diferente), Diálogo (Párbeszéd) – foi formada para desafiar o Fidesz. Pesquisas mostram que os dois lados contam, no momento, com níveis de popularidade parecidos.
O cenário pode ser animador, mas a tarefa está longe de ser fácil. Orbán controla a máquina pública, seu partido é organizado e o sistema eleitoral, desenhado por ele próprio ao longo da última década, o favorece. Simulações mostram que, mesmo com mais votos nas listas partidárias, a oposição pode ter menos assentos no Parlamento.
A coalizão também está longe de ser um grupo homogêneo – os partidos enxergam Orbán como adversário comum, mas têm plataformas e interesses distintos. Ambiente propício para disputas internas sobre variadas questões – a começar pela escolha de quem seria o indicado a primeiro-ministro.
"A oposição pode formar uma frente contra todos os candidatos do Fidesz nas eleições e realizar as primárias de oposição pela primeira vez, mas há muito trabalho a ser feito. É uma situação em que não é possível fazer previsões", diz Tamás Lattmann, professor da Universidade de Nova York em Praga e ex-professor da Universidade Nacional de Serviço Público em Budapeste.
Ele também cobra uma posição mais atuante da UE. "Os tradicionais acordos europeus não funcionam com Orbán, a única possibilidade é estreitar seu campo de manobra, condicionando fundos da UE a certos valores, como o Estado de Direito."
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>