A pressão que o ex-chefe da Receita Federal Julio Cesar Vieira Gomes exerceu sobre os servidores públicos para liberar as joias detidas na alfândega de Guarulhos (SP) em favor do governo de Jair Bolsonaro (PL) envolveu atos extraoficiais que, no cargo de comando do órgão, jamais poderiam ter sido utilizados.
O <b>Estadão</b> apurou que, para conseguir reaver as joias estimadas em R$ 16,5 milhões e enviá-las ao então presidente Jair Bolsonaro e à primeira-dama Michelle Bolsonaro, Gomes pressionou servidores de diversos departamentos, por meio de mensagens de texto enviadas por aplicativos como WhatsApp, áudios, telefonemas e e-mails sobre o assunto. A ofensiva alcançou também subsecretários do órgão.
Em um dos áudios aos quais o <b>Estadão</b> teve acesso, Gomes pede que um servidor acesse outro departamento da Receita – a Coordenação-Geral de Programação e Logística (Copol) – e passe o contato dele para o responsável da área, sob o argumento de que precisa explicar o caso da retenção e que se trata de item que "faz parte do gabinete pessoal" da Presidência da República. "Existe um gabinete pessoal, é um órgão que ele criou", diz.
Na ocasião, Gomes tentava driblar a primeira negativa a sua tentativa de liberar os diamantes dados pelo regime saudita. Na mensagem em áudio, ele afirma: "Eu te liguei agora, não precisa me retornar, não. Mas passa meu telefone, por favor, para o… Pô, eu sei que o sobrenome dele é (Gomes diz o sobrenome do servidor), que é da Copol, e que passou a informação lá para o (Gomes cita o nome do delegado da Receita), lá de São Paulo, dizendo que tem que ser o secretário de Administração da Presidência para assinar o ofício no caso de doação. Eu preciso explicar para ele que não é isso. Que é outra coisa", diz Gomes.
Ele prossegue na mensagem: "É um outro órgão, outra unidade separada da Presidência da República como um todo. É um outro órgão chamado acervo histórico e pessoal. Faz parte do gabinete pessoal da Presidência da República. É um órgão lá dentro que ele criou. Tem um decreto, que ele criou. E o responsável por isso daí é quem assinou o ofício eu vou mandar o decreto".
<b>Acervo</b>
Gomes faz referência na mensagem a um decreto editado há 21 anos – e argumenta que seu pedido para recuperar as joias se baseia neste texto. Trata-se do Decreto 4.344, de 26 de agosto 2002, que trata de regras sobre "preservação, organização e proteção dos acervos documentais privados dos presidentes da República".
Segundo servidores da Receita, no entanto, Gomes adotou uma interpretação equivocada das regras para tentar convencer os funcionários a liberar os diamantes e, portanto, cometeu um ato irregular. Por esse "entendimento" mencionado pelo então secretário da Receita, os presentes recebidos pelos mandatários só devem ser incorporados ao patrimônio público se tiverem sido dados em solenidade de troca de presentes. "Os documentos que constituem o acervo presidencial privado são, na sua origem, de propriedade do presidente da República, inclusive para fins de herança, doação ou venda", afirma a lei.
Em 2016, porém, o Tribunal de Contas da União (TCU) vedou esse tipo de interpretação ao preencher uma lacuna legal e fixar que ex-presidentes só podem ficar com "itens de uso pessoal ou de caráter personalíssimo". O órgão, inclusive, determinou a devolução de 434 presentes recebidos por Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e 117 dados para Dilma Rousseff (2011-2016).
O <b>Estadão</b> apurou que a Copol, após ser provocada pelo ex-secretário, respondeu ao chefe da Receita, por meio de um ofício formal, negando a entrega do conjunto de joias.
<b>Aplicativo</b>
Em outra frente, Gomes enviava documentos por WhatsApp e usava a ferramenta para dar ordens e orientar funcionários. Na avaliação dos servidores, era um ato calculado para evitar deixar suas digitais em sistemas oficiais.
Além da mensagem enviada em áudio para a chefia de seu gabinete, um tipo de atitude que foge do rito interno da Receita, o ex-secretário disparou diversas mensagens a diferentes servidores nos meses que antecederam o fim do mandato de Bolsonaro, na tentativa de retirar o presente dado pela Arábia Saudita dos cofres da Receita, em Guarulhos.
Como revelou o <b>Estadão</b>, seu ato final, depois de recorrer a todas essas pressões, se deu no dia 29 de dezembro do ano passado, quando ele ligou para o primeiro-sargento da Marinha Jairo Moreira da Silva, que tinha acabado de desembarcar no aeroporto de Guarulhos. A mando do gabinete pessoal de Bolsonaro, o militar viajou para São Paulo para tentar levar as joias.
Na noite daquela quinta-feira, 2, Gomes ligou para o primeiro-sargento e tentou interceder em favor do governo Bolsonaro. Em mais uma ofensiva, buscou convencer o auditor fiscal que estava no aeroporto a liberar o estojo com as joias de diamantes, sem êxito.
<b>Paris</b>
Em 30 de dezembro de 2022, a um dia de acabar o mandato de Bolsonaro, ele foi indicado pelo ainda presidente para assumir um cargo na embaixada brasileira em Paris, mas o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, reverteu a nomeação no início do governo Lula.
Por meio de nota, Gomes afirmou que, quando acionou, por telefone, o emissário de Bolsonaro no dia 29 de dezembro, no aeroporto de Guarulhos, seu objetivo não era autorizar a liberação dos itens, mas informar o militar sobre a situação em que os bens apreendidos se encontravam.
"Em relação à conversa telefônica no dia 29 de dezembro, apenas informei ao servidor designado que a incorporação dos itens ainda estava em análise e, portanto, não ocorreria naquela data", disse.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>