Uma sela em tamanho real com “grades” de linha e de lã foi armada na passarela do projeto Ponto Firme, que fez uma participação especial na São Paulo Fashion Week, no sábado, 21, marcando o primeiro dia da semana de moda. A iniciativa, criada pelo designer Gustavo Silvestre, desenvolve peças em crochê feitas pelos detentos da Penitenciária Desembargador Adriano Marrey, em Guarulhos, e causou comoção. Baseados na premissa de que um desfile é uma narrativa, que deve contar uma história, o grupo de 20 presidiários decidiu falar do cotidiano da prisão através das roupas.
Logo no primeiro look, a camiseta branca com pontos miúdos e a calça bege remetiam ao uniforme da cadeia, usados diariamente. Algumas peças masculinas tinham corte austero e uma mistura pesada de tons escuros. Mochilas e toucas traziam aplicações escritas Racionais. E então vieram as cores. Amarelo ovo, vermelho vivo, azul anil e laranja fosforescente…
Casacos traziam desenhos geométricos traçando tons vibrantes e radicalmente contrastantes, peças em algodão, sarja e flanela bordadas vieram com pequenos bonecos e bichinhos de crochês bordados, túnicas soltas sobre calças retas em preto e branco. Aos criadores que não se encontraram na confecção de roupas, Silvestre ensinou a técnica de moulage a partir de toalhinhas chinesas de crochê, o que resultou em interessantes vestidos franjados e assimétricos.
“Para os alunos do projeto, o crochê significa uma janela dentro da prisão, que traz cor e autonomia. O processo criativo foi conduzido sempre pela visão que eles têm do mundo”, conta Silvestre, lembrando que a estilista Karlla Girotto deu deu um workshop sobre criação para os detentos, antes de começarem a produção das peças.
A mistura alegre de cores, por exemplo, segundo Silvestre, representa a luz e as pessoas que vêm de fora da prisão, como as mulheres, pais, mães, filhos e amigos. Já a música disruptiva, com cortes bruscos e zunidos estridentes, causava um desconforto proposital — tocou ainda um trecho de Diário de Um Detento, um clássico dos Racionais MCs. “As composições são 100% dos alunos, que são verdadeiros artesãos e coloristas. Tudo foi feito de maneira bem autoral”, diz Silvestre.
Para apresentar a coleção, o casting foi formado por pessoas comuns, muitos modelos negros e convidados que de alguma forma tinham ligação com a penitenciária. Duas gêmeas MCs que desfilaram, por exemplo, são filhas de pais que já estiveram na cadeia. Um ex-detento também participou do show. A cantora Luedji Luna, em um longo branco de crochê, recitou na passarela um trecho emocionante de sua música Now Frágil, mencionando corpos vedados e carcereiros, em um momento de contestação social.
“Eu era estilista, estava passando por um momento de incerteza e o crochê mudou a minha vida, me trouxe liberdade e autonomia.Não precisava mais de modelista, cortador, estamparia, nada disso. Eu me bastava com uma linha e uma agulha. Quando recebi o convite para ensinar crochê na penitenciária, pensei que isso poderia ser bom para eles, como foi para mim”, diz Silvestre. A imagem dos estilistas dentro da cadeia projetada no final do desfile mostra que ele estava certo.