As corridas com barreiras representam uma dor de cabeça para o Brasil na história do atletismo. Embora tenha produzido bons atletas, o País nunca conseguiu medalhas em Jogos Olímpicos ou Mundiais. Nas três últimas edições da Olimpíada, por exemplo, os barreiristas não passaram das semifinais nas provas de 110m e 400m. Uma nova geração vem conquistando bons resultados e dá esperança de uma nova escrita para o Mundial de Doha, no Catar, e os Jogos de Tóquio-2020.
O garoto Alison Brendom Alves dos Santos puxou para si os holofotes do GP de Atletismo, disputado no fim do mês de abril, em São Paulo, ao vencer os 400m com barreiras no tempo de 48s84 e quebrar o recorde sul-americano sub-20. Considerado uma das promessas do atletismo brasileiro, Alison alcançou o ranking mundial da categoria e o quarto lugar na lista adulta da Associação Internacional de Federações de Atletismo (IAAF, na sigla em inglês).
Ele está no último ano da categoria sub-20. Já classificado para os Jogos Pan-Americanos de Lima, no Peru, e para o Mundial do Catar, o garoto vai estrear nas competições internacionais adultas. “Meu segredo é pensar que as barreiras não são inimigas. Elas não querem derrubar ninguém e estão ali para me fazer companhia nos 48s de prova”, filosofa o menino de 18 anos.
As provas com barreiras são complicadas. São disputas de velocidade que exigem técnica de salto. Os atletas devem completar o percurso saltando sobre dez barreiras em suas raias. Eles não são desclassificados quando encostam ou derrubam os obstáculos, mas perdem centésimos preciosos que comprometem o tempo final da prova.
Além da estratégia pessoal que vem dando certo, Alison tem um biotipo que ajuda na disputa. Ele tem 1,98m de altura – 1,12m só de pernas -, o que ajuda muito na hora de transpor os obstáculos da pista. “Não fui eu que escolhi a prova. Foi ela que me escolheu”, comentou o atleta nascido em São Joaquim da Barra (SP).
Embora tenha essa vantagem natural nas pernas, Alison teve de superar outro tipo de barreira para começar a fazer atletismo. Quando tinha dez meses e já andava se escorando pelos móveis da casa, ele sofreu um grave acidente doméstico. Bateu no cabo da frigideira que estava no fogão e virou sobre si o óleo quente no qual a avó fritava peixe. O líquido fervente caiu em sua cabeça, ombro e braços. Foram cinco meses de internação no Hospital do Câncer em Barretos.
Não ficaram sequelas físicas – os bons resultados atestam isso. Mas ele está sempre de boné. Ele só tira o acessório durante a competição. Nos treinos, protege as cicatrizes da cabeça do sol intenso. A pele é mais sensível no local. Por outro lado, a cobertura na cabeça atrapalha pela resistência ao vento e pela limitação da visão.
Fora das pistas, o boné é sua proteção diante de alguns olhares que ainda o incomodam. “Na primeira competição, em 2014, eu corri de touca. Na segunda, comecei a não me preocupar mais com isso. Eu sou assim”, diz o atleta do Pinheiros.
Alison fala sobre o acidente com clareza, sem incômodo, sem gaguejar. Na arquibancada da pista de atletismo do Pinheiros, em São Paulo, conta que olhares o perseguem nas corridas em função da marca que carrega. Por isso, não tira o boné – inclusive durante a entrevista ao Estado.
Com o Bolsa Atleta categoria internacional (R$ 1.850) e o salário do Pinheiros, ele ajuda a família, que ficou no interior. Sua mãe é aposentada e o pai, caminhoneiro. “No começo, eles falavam para eu procurar um emprego. Hoje, entendem que sou atleta.”
RECORDE – Gabriel Constantino tem mais anos de estrada que Alison. Seu nome já vem aparecendo com destaque nas últimas temporadas. O corredor de 24 anos é o recordista sul-americano dos 110 metros com barreira. Em um meeting na França, em junho do ano passado, ele conquistou a prata com 13s23. O resultado é seis centésimos mais rápido do que a melhor marca até então, que era de Redelem Melo, outra promessa das barreiras, em 2004. Em abril do ano passado, Constantino marcou 13s38, o melhor tempo de um brasileiro em mais de uma década.
A marca que ele obteve foi impactante também no contexto mundial. Nos Jogos Olímpicos do Rio, em 2016, esses mesmos números – 13s23 – teriam significado a medalha de bronze para Gabriel. Em tempo: o carioca não se classificou para os Jogos em casa por dois centésimos – o índice era 13s48 e ele correu em 13s50.
Toda essa numerada deixa uma conclusão: a trajetória de Gabriel não é um ponto fora da curva. “Ele está no melhor momento da carreira”, avaliza o técnico Renan Valdiero. “O recorde brasileiro e sul-americano fez com que ele se colocasse entre os melhores do mundo. Ele está apto para brigar por medalha no Pan e no Mundial”, diz o treinador.
A exemplo de Alison, Gabriel também tem um diferencial em sua luta para colocar o Brasil no mapa das provas com barreiras. Ele construiu sua carreira nas provas de salto (em altura e distância), o que garante uma vantagem na hora das disputas atuais. “A impulsão que o atleta precisa para transpor a barreira, durante a prova, é parecida com o movimento do salto”, compara Constantino.
A trajetória pessoal de Gabriel é parecida com a de centenas de talentos do atletismo brasileiro. O atleta mora no bairro Vicente de Carvalho, zona norte do Rio. A região fica próxima ao Morro do Juramento, local dominado pelo tráfico de drogas. Um de seus amigos, que chegou a treinar junto com ele, acabou se tornando traficante.
Sua carreira começou na Vila Olímpica da Mangueira. Hoje, ele é beneficiado pelo Bolsa Atleta, categoria pódio (R$ 3.100), e também é atleta do Pinheiros. É casado e tem um filho de um ano.
Warlindo Carneiro Silva Filho, presidente da Confederação Brasileira de Atletismo (Cbat), explica que historicamente os atletas das categorias de base costumam se dedicar às provas de velocidade ou resistência. Com isso, as distâncias intermediárias ficam em segundo plano. “O Brasil vem evoluindo nos últimos anos. Estamos levando nossos atletas para as competições internacionais para promover uma troca de experiências cada vez maior. Estamos otimistas para conseguir a primeira medalha.”