Pouco depois da queda do Muro de Berlim, um grupo de pessoas se reuniu em Washington na tentativa de convencer o então presidente dos EUA, Bill Clinton, de uma tese impopular após anos de Guerra Fria: impedir a expansão da Otan em direção ao Leste Europeu. Entre membros da cúpula do governo, membros do Partido Democrata e professores das principais universidades americanas, estava o jornalista Thomas L. Friedman.
"Todos nós nos opusemos à expansão da Otan em direção ao leste por um simples motivo: já tínhamos conseguido o que sempre sonhamos, uma revolução democrática na Rússia. Então, por que deveríamos expandir a Otan como nossa primeira reação a isso? Nós, na verdade, deveríamos ter trazido a Rússia para dentro da Otan", recordou Friedman, vencedor de três prêmios Pulitzer e um dos principais observadores da política externa americana nas últimas décadas.
Em entrevista ao <b>Estadão</b>, o colunista do New York Times afirma que o conflito na Ucrânia é a primeira guerra realmente mundial em razão da globalização e apontou para um renascimento do Ocidente na defesa das instituições de valores e instituições democráticas após anos de avanços do autoritarismo pelo mundo. A seguir, os principais tópicos da entrevista:
<b>GUERRA MUNDIAL.</b> Não há dúvida que é uma guerra interconectada. Os preços da comida e da gasolina estão mais altos hoje em São Paulo porque Putin decidiu invadir um país a meio mundo de distância. Além disso, o que estamos presenciando em termos de tecn<b>ologia nesta guerra é fenomenal. Pessoas enviaram US$ 20 milhões para a Ucrânia apenas alugando quartos que elas não vão usar pelo Airbnb.
Satélites foram capazes de refutar as alegações russas de que não mataram civis a partir de imagens captadas. Estamos vendo uma espécie de Big Brother.
Uma história incrível surgiu durante a semana, de que os ucranianos estão fotografando os rostos dos soldados russos mortos em combate e usando reconhecimento facial para identificá-los através das redes sociais russas. Isso é fenomenal.
Minha definição de globalização não é a definição econômica, que considera fluxos financeiros e comerciais. Minha interpretação de globalização é a de que criamos plataformas técnicas que permitem que mais pessoas, em mais lugares, de múltiplas maneiras e gastando menos dinheiro possam agir globalmente. Se a globalização é a habilidade de agir globalmente, então, meu Deus!, esse conflito só a reforça.
<b>DESFECHOS DA GUERRA.</b> Vamos ter pelo menos mais um ato nessa história, mas não sabemos qual é. Estamos assistindo a uma peça, mas não sabemos o nome, quem são os atores, nem o que vai acontecer. Poderia ser – não é provável, mas é possível – o colapso do Exército russo na Ucrânia, com Kiev realmente obtendo uma vitória Não descarte esse cenário. É preciso manter essa possibilidade no radar, pois pode levar a um conjunto totalmente diferente de ações. Talvez Putin use armas nucleares táticas para evitá-lo.
Esta semana será uma semana importante. Uma das minhas bandas de rock favoritas se chama Neon Trees, e eles têm uma das minhas músicas preferidas, que se chama Everybody Talks (Todo mundo fala). Em países com sociedades mais fechadas, como a Rússia, todo mundo fala. Eles sabem quem está fazendo besteira, quem está trapaceando, quem está roubando, quem está mentindo… E na semana passada vimos, pela primeira vez, relatórios críticos de blogueiros militares na Rússia, alguns analistas respeitados, dizendo "isso é um desastre". Portanto, esta é uma semana muito importante.
Quem sabe como isso será sentido pelo sistema internacional? Quando esse tipo de pressão começar a ser escutado tanto nos EUA, quanto na Rússia e na Ucrânia, eles vão começar a negociar.
<b>ORDEM MULTIPOLAR E A GLOBALIZAÇÃO.</b> Eu escrevi A Terra é Plana em 2004, e desde então todo ano alguém tenta escrever um livro dizendo que a terra não é plana. Depois do 11 de Setembro: "a globalização acabou, a liberdade acabou"; depois da crise de 2008, "a globalização acabou, a liberdade acabou". Adivinha? A globalização não acabou, a não ser que você considere que o desejo humano de se conectar com outro ser humano acabou, e a tecnologia não permite que essas conexões sejam mais fáceis, rápidas e baratas.
A tecnologia, como eu e você estamos demonstrando agora, torna tudo mais fácil: você está sentado em São Paulo, eu estou sentado em Washington, e você pode fazer uma pergunta que seu editor enviou por e-mail em tempo real. Posso ver o sorriso no seu rosto. Isso não acaba. O que é problemático é como continuar aproveitando o que há de melhor nisso e nos protegendo do que há de pior. É uma satisfação e um orgulho para mim que alguém possa me perguntar sobre algo que eu escrevi em um dos meus artigos, como se tivesse acabado de ler ao The New York Times sentado em algum lugar de Nova York enquanto come um bagel. Eu simplesmente amo isso. Na minha visão, nosso trabalho é obter o melhor, e amortecer o que for ruim em cada um desses conflitos globalizados.
É isso que está transmitindo a instabilidade da Ucrânia e da Rússia direto para São Paulo em 24 horas, e o que permite a patologistas forenses na Ucrânia usarem reconhecimento facial em soldados russos mortos e identificá-los pelas redes sociais e ligar para os seus pais.
Estamos vendo um potencial renascimento do Ocidente, e regimes autoritários que todos pensavam que estavam em ascensão e em marcha – e talvez o presidente Bolsonaro devesse tomar nota disso – não estão. Talvez a era do "homem forte" esteja acabando, e não mais começando.
<b>ATAQUES À DEMOCRACIA.</b> O Brasil sofre um pouco com esse problema de líder autoritário projetando poder, mas talvez nós estejamos vendo algo muito interessante. Nos últimos dez anos, parecia que as autocracias eram muito competentes. Que elas podiam "entregar o serviço bem feito". A Rússia conseguia fazer o serviço, até mesmo nos hackear, e nós parecíamos incompetentes. Eu diria que isso está sendo revertido.
Você está vendo a superioridade do Ocidente em fabricar e entregar armamentos de precisão que a Rússia não consegue. E estamos fazendo isso em nome de princípios amplamente aceitos e respeitados.
O Brasil deveria estar a favor desses princípios também. Eu não iria querer apoiar um mundo em que a Argentina pudesse dizer, em algum amanhecer, que quer um pedaço do Brasil.
<b>DE VOLTA A 1914?</b> Há duas ameaças aqui: uma é que se diga "está tudo bem" sobre a Rússia estuprar a Ucrânia – porque é realmente o estupro de um país – e não se faça nada porque é perigoso. Isso seria um verdadeiro perigo, pois se é permitido estuprar a Ucrânia, ele (Putin) pode estuprar a Letônia, Lituânia, Estônia, Polônia, Moldávia e quem mais ele quiser.
A outra ameaça é que se provoque uma reação em cadeia, em que se comece defendendo a Ucrânia e se termine com uma guerra contra a Rússia. O presidente (dos EUA) Joe Biden está fazendo um bom trabalho ao deixar claro que nós não estamos enviando tropas e não queremos que isso aconteça. Não significa que não possa acontecer, mas não é isso que queremos. Mas a guerra não acabou e nós ainda estamos em uma situação perigosa, e não sabemos o que Putin fará se sua operação militar for completamente frustrada.
Estamos em um ponto para o qual o sistema não foi realmente testado desta forma desde a 2.ª Guerra. E agora chegou a um teste – e é muito importante para a estabilidade que o sistema passe neste teste.
<b>AVALIAÇÃO DE RISCOS.</b> Não se pode generalizar. Mas eu acredito que é muito importante para o sistema internacional que exista uma ordem estabelecida em regras. Algumas pessoas questionam por que os EUA ou a União Europeia devem estabelecê-las, que Rússia e China podem querer defini-las. Eu respondo: "tudo bem, ótimo. Que tipo de regras eles querem estabelecer?".
Qual é o conjunto alternativo de regras que maximiza a capacidade de mais pessoas no planeta atingirem todo o seu potencial? O que você acha de uma regra que diz que eu posso acordar de manhã e dizer que seu país é parte do meu, porque meu "pregador" me disse isso e, portanto, tenho o direito de invadir o seu? Ou que você não tem voz para determinar qual regra é válida?
Eu deveria ter o direito de envenenar pessoas com guarda-chuvas? Eu deveria ter o direito de envenenar meu opositor com uma cueca envenenada? Que regras estão se tentando estabelecer? Putin se ressente de que os EUA estabelecem essas regras. Mas qual seria o mundo se ele as estabelecesse?
<b>SUÉCIA E FINLÂNDIA NA OTAN.</b> A adesão de Suécia e Finlândia à Otan não torna um acordo mais difícil. Na verdade, aumenta a possibilidade de Putin perceber o incrível custo que ele paga pelo ataque à Ucrânia, pois ele simplesmente aumentou a fronteira direta da Otan contra ele em cerca de 1.300 km. Não culpo Suécia e Finlândia por querer entrar na aliança tendo em vista o que aconteceu na Ucrânia. Como americano, estou confortável com isso, e acredito que está mostrando o custo desta guerra para os russos e para Putin.
Isso não torna um acordo menos ou mais possível, mas se alguma coisa o tornar mais possível, é quando Putin perceber o quanto errou no cálculo. Ele queria basicamente finlandizar a Otan e acabou otanizando a Finlândia.
<b>CONFLITO EM LARGA ESCALA.</b> Se você voltar ao começo dos anos 80, à Rússia e à China, nós tivemos 40 anos bastante pacíficos. Na verdade, se você voltar ao final da 2.ª Guerra, há um período ainda mais longo, o que chega a ser extraordinário.
Mas essa paz depende de duas coisas: uma é que Putin seja um bad boy, mas não um estuprador. Nós estávamos preparados para tolerar o comportamento de bad boy de Putin, como na Geórgia. Nós diríamos a ele: "você é um bad boy. Pare de ser um bad boy". E ele recuaria um pouco. Ele estava dentro do jogo e pisou fora. Foi de bad boy a estuprador.
E quando você vai de bad boy a pária, a estuprador, você tem um problema real. A China também estava no jogo, jogando pelas regras do jogo, e estava meio que se movendo gradativamente em direção a uma sociedade estabelecida em leis, muito gradualmente, quando de repente, sob Xi, eles tomaram outra direção.
Então, se você olhar para as normas e instituições que sustentam essa certa longa paz que tivemos, ambas estão realmente bambeando agora, e isso é muito preocupante.
<b>PROVOCAÇÃO DA OTAN À RÚSSIA.</b> No fim dos anos 90, após a queda do Muro de Berlim, fiz parte de um grupo restrito de pessoas em Washington: eu, Sam Nunn (então senador democrata), Bill Perry (secretário de Defesa de Bill Clinton), Michael Mandelbaum (professor da Universidade Johns Hopkins) e George Kennan, considerado o pai da política de contenção americana.
Todos nos opusemos à expansão da Otan em direção ao leste por um simples motivo: já tínhamos conseguido o que sempre sonhamos, uma revolução democrática na Rússia. Então, por que deveríamos expandir a Otan como nossa primeira reação a isso? Na verdade, deveríamos ter trazido a Rússia para dentro da Otan.
Argumentei sobre isso em inúmeros artigos e colunas, mas nossa posição foi derrotada por pessoas que diziam "está tudo bem, os russos vão se acostumar com isso". Mas não aceitamos isso na época, e nem aceitamos esse argumento agora.
Então, nessa época, eu acreditava que a expansão da Otan era um erro. Mas hoje estamos em um contexto totalmente diferente. Não estamos mais no contexto de uma revolução democrática. Estamos em um contexto onde um líder envenena pessoas com guarda-chuvas e cuecas envenenadas. Temos uma liderança completamente diferente na Rússia.
O assunto da expansão da Otan agora é basicamente um "bicho-papão autofabricado", pois os EUA já tinham dito que a Ucrânia não entraria em nenhuma expansão da Otan, e Alemanha e França também não teriam permitido isso.
De 2000 a 2008, se você analisar Putin, ele foi um bom e estável líder de governo, que basicamente atuou como um distribuidor de riqueza, pois era um período de alto preço do petróleo e a Rússia alcançou um mínimo de estabilidade. Mas depois de 2008, conforme me apontou o biógrafo de Putin, Leon Aron, ele se tornou uma pessoa diferente. Putin se tornou um distribuidor de dignidade – da dignidade da Rússia, da Pátria-mãe, etc.
Não acredito que ele estivesse preocupado sobre a Ucrânia entrar na Otan. Vinte anos depois, Putin estava preocupado com a Ucrânia entrar na União Europeia. Pois se você tivesse um exemplo eslavo bem-sucedido de livre mercado e democracia na Ucrânia, ao lado do modelo eslavo malsucedido e cleptocrático da Rússia, a comparação seria óbvia para todos, e Putin não podia arriscar correr esse risco. A expansão da UE hoje é uma ameaça maior para Putin do que a expansão da Otan.
</b> As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>