Mundo das Palavras

Quem faz isto a um venezuelano, no Brasil?

Um atentado contra sonho humano. É “isto”. No contexto desta indagação. Sonho representado através da pomba, pelo escultor norueguês Fredrik Radumm. Numa obra criada para lembrar a morte de imigrante europeu numa microcomunidade formada nas Ilhas Galapagos, no Equador, por idealistas, em 1930. 
 
A pomba (o sonho utópico de paz e felicidade), na escultura, ainda é capaz – milagrosamente – de impedir que as águas do Oceano Pacífico expulsem das ilhas o imigrante desacordado. Mas torna pungente a pergunta: afinal, quanto resiste um sonho de imigrante? De qualquer um, entre os 160 milhões, que, segundo a ONU, vagam, hoje, pelo planeta, empurrados por crises políticas, econômicas, guerras, ou expectativas otimistas. Um sonho deste ser humano sem casa, família, trabalho, escola, amigos –, portanto, privado dos afetos e do respeito habituais que lhe dão identidade e dignidade? Mas que, apesar disto, ainda detém as marcas da História e da cultura de seu povo. E continua dotado de inteligência, sensibilidade, experiência e habilidade pessoais. Valores estes, que, no caso dos imigrantes venezuelanos, são particularmente valiosos para os brasileiros. Afinal, não compartilhamos com venezuelanos, no âmbito da geopolítica internacional, o mesmo trágico destino de latino-americanos? Não somos habitantes de dois países ricos da região, com vastas reservas de petróleo, entre muitos outros recursos naturais, além das suas privilegiadas diversidades ambientais? Porém, com populações empobrecidas devido às relações econômicas abusivas e exploradoras que lhes impõem poderosos governos e empresas estrangeiras? Contra os quais, aliás, apenas  os venezuelanos têm se insurgido, nos últimos anos. Pagando por esta rebeldia alto preço.  
 
A escultura de Radumm coloca para nós, brasileiros, uma indagação contundente: quanto resiste o sonho do imigrante venezuelano num país de imigrantes, como o nosso? Acostumado a incorporar sob diversas formas múltiplas contribuições de estrangeiros – portugueses, italianos, sírios, libaneses, japoneses, chineses. Em nossa economia com a experiência da mão de obra deles. Em nossa produção cultural, com a riqueza das suas música, dança, literatura. Em nossos hábitos alimentares, com as variadas culinárias típicas que nos trazem. 
É possível, portanto, nos aquietarmos diante de brasileiros, como nós, que – para vergonha nacional – transformem o sonho de imigrantes deste país-irmão num pesadelo? 
 
A Brasil vai se tornar um pesadelo como aquele antevisto e descrito por José Ramón Medina, poeta venezuelano, falecido em 1979? “Estás numa terra cruel. Deixando que um cão sombrio, que um salobro cão te morda, te lamba as carnes avaramente. São ferozes os dias que te acompanham. E a dor sobe a teus olhos, desce-te ao coração, como um cavalo negro a cabecear na noite. Susténs-te a puro angustiares-te. A puro ausentares-te de ti. Como um triste mugido. Como a sombra inútil nos olhos de um morto. Feita de pavorosa claridade. Ah, ali estás. Represada maré, com lentidão doendo na alma tristíssima dos dias. Doendo com um golpe tenaz. Com uma suja espuma sangrenta a bramir na deserta orla da noite”. 
 

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