Há muito em comum entre as declarações sexistas que provocaram a queda do diretor-executivo do Torneio de Indian Wells no início desta semana, os gritos de “Bicha” disparados nos estádios brasileiros a cada tiro de meta cobrado pelo goleiro adversário e o comportamento racista de torcedores do Grêmio perante o hoje desempregado goleiro Aranha. Mas o principal é que esse tipo de ação machista, homofóbica e racista não passa mais despercebida perante a opinião pública.
É para debater por que esse tipo de comportamento ainda tem espaço nos estádios brasileiros, com torcedores que se sentem com poder para destilar preconceitos sem qualquer temor de serem castigados, que foi criado o Respeito Futebol Clube, um movimento coletivo com a meta de colocar em pauta a luta contra o preconceito no esporte.
O pontapé inicial do grupo foi dado na última terça-feira, em uma livraria do centro de São Paulo, com a realização de um debate sobre machismo, racismo e homofobia no futebol brasileiro que reuniu dezenas de jornalistas, torcedores, ativistas, militantes, membros de organizações e estudiosos do assunto.
“Numa época em que o ódio e a intolerância viraram moda, o nosso desafio é transformar em moda o que deveria ser óbvio, transformar em costume o que deveria ser o permanente prazer pela mudança: a luta pela diversidade e pelo respeito ao humano”, disse o jornalista Marco Aurélio Carvalho, da EBC, um dos presentes à mesa do debate, ao lado dos também jornalistas Mário Marra (ESPN e CBN), Renata Mendonça (Dibradoras), Wagner Prado (Associação dos Cronistas Esportivas do Estado de São Paulo) e Ana Clara Ferrari (Prefeitura de São Paulo), além da ex-jogadora Juliana Cabral.
Ao fim do evento, foi lido um manifesto com todas as ideias básicas que marcam a fundação do Respeito Futebol Clube, com o grupo questionando o conceito de que o estádio é o “lugar mais democrático do mundo”, onde desconhecidos se abraçam no momento do gol, mas também onde preconceitos são propagados sob a justificativa de que a paixão cega.
O encontro e a divulgação do manifesto são apenas os primeiros passos para desconstrução desses comportamentos arraigados na cultura dos estádios de futebol, também se aproveitando de um momento histórico no País no qual esse tipo de ação passa a sofrer posicionamento contrário de uma parcela ativa da sociedade.
Até por isso, o planejamento do Respeito Futebol Clube prevê a realização de novos debates no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte até o meio deste ano. Em São Paulo, a ideia é agora realizar novas reuniões para que se organize encontros temáticos, com a intenção de intensificar o debate sobre a homofobia, o machismo e o racismo no futebol. A partir daí, será possível construir propostas concretas.
Em contatos iniciais, o coletivo também já recebeu o apoio informal de membros do Bom Senso FC e da Universidade do Futebol. E, posteriormente, a ideia será chegar aos clubes, utilizando a força deles para ajudar a combater a cultura do ódio, além, claro, de estreitar o relacionamento com as torcidas. As próprias lideranças do grupo lembram que alguns times brasileiros já realizaram ações louváveis, como o Sport, que criou uma campanha para adoção tardia de crianças, realizada em 2015.
Seria um apoio significativo para fomentar o debate e chutar o preconceito para longe dos estádios. No momento em que o ódio parece estar à flor da pele, caminhando ao lado da intolerância, o Respeito Futebol Clube entra em campo para fomentar o respeito e a diversidade.
“A gente não sabe para qual caminho isso vai. Mas o grande objetivo é promover o debate, tentar abrir os olhos para o que acontece. Para mim, está claro que hoje o futebol é um espaço de exclusão de vários setores da sociedade”, disse Mário Marra.
Confira o manifesto divulgado pelo Respeito Futebol Clube:
RESPEITO FUTEBOL CLUBE: UM GOLAÇO DA DEMOCRACIA
Futebol é uma das maiores paixões do brasileiro. Nem sempre o melhor vence. Por mais talento que o jogador tenha, invariavelmente dependerá do trabalho coletivo. A baixinha e franzina pode ser mais útil taticamente que a jogadora alta e musculosa. Dois chinelos de dedo de cada lado e… Pronto! Cancha de jogo.
A paixão pelo time une gerações, credos, gênero, etnias e classes sociais. Há quem diga ser o maior exercício de democracia que a história conhece.
Futebol, do campo à arquibancada, é verve. “O gol é como um orgasmo”, dizia o Doutor Sócrates, talento da Seleção Brasileira. “É grito sufocado de um povo sofrido”, destacava Osmar Santos nas narrações dos gols em plena ditadura. É catarse.
Na arquibancada, o torcedor se sente livre. Com poder. Sente que pode tudo.
Todos podem tudo?
O negro reclamar dos gritos de “macaco”, pode?
Tornar as leis mais rigorosas contra o racismo no futebol, também pode ou fica “chato”?
Há quem faça cara feia pra mulher que joga, apita, comenta, faz reportagens de campo, e muito mais. E reclamar do machismo no futebol, vale?
As ofensas contra gays e lésbicas ainda são aceitas como naturais.
Quando o coletivo não é sinônimo de diversidade, é mesmo coletivo?
O estádio, que muitos ainda chamam de “o lugar mais democrático do mundo”, tem se transformado num palco de intolerância e desrespeito.
Os preconceitos, muitas vezes reprimidos lá fora, são escancarados na arquibancada e nos bastidores do futebol. Que tipo de democracia é essa?
O “vai tomar…” contra a chefe de Estado na Copa do Mundo foi dito sorrindo, enquanto a faixa contra corrupção foi reprimida com violência.
Do barulho com as imitações de macaco para o goleiro Aranha aos gritos de “gostosa” ou de “volta para a cozinha” para a árbitra, a bandeirinha, a torcedora, a jogadora…
Do grito de “oooo bicha…” no tiro-de-meta” à má vontade com as comentaristas…
Os amantes do futebol podem fazer algo diferente. O mesmo esporte que serviu de difusor da democracia no país tem força e peito para fortalecer a defesa da diversidade, o meio-campo do diálogo e o ataque ao preconceito.
E estamos prontos para fazer, com vocês, belas jogadas nesse campo.
Nós do Respeito Futebol Clube – jogadores, jornalistas, torcedores, árbitros e amantes do futebol -, sem distinção de raça, gênero ou orientação sexual, estamos aqui para construir um novo time. Onde podem ser escalados milhares de jogadores. Não apenas onze.
Para quem acha que “o futebol está ficando chato” por causa da luta contra as diferentes formas de discriminação, um recado: chata é a arbitrariedade. Chato é o preconceito. Sem graça é a sua intolerância. Sem eles, o mundo fica muito mais digno, humano e divertido.
Essa goleada pode e deve sair de lindos lances coletivos. Com golaços e vitória da democracia.