Tomie Ohtake afirma que saiu do Japão para “poder pintar”. “Mulher com minha idade tinha de casar”, diz a artista em uma das passagens mais bonitas do documentário inédito de Tizuka Yamasaki sobre a pintora, escultora e gravadora que acabou de completar 101 anos, no dia 21 de novembro. Nas docas do porto de Santos, Tomie lembra que em 1936, quando desceu do navio e viu o mar, o sol era tão forte que tudo ficou com “gosto de amarelo”. Nesse mesmo dia, seu irmão, que já vivia no Brasil, a levou para comer um bife a cavalo, algo que ela não conhecia.
“Gostei de andar com a Tizuka (no porto). Não gosto muito de participar de filmes”, diz Tomie e depois, sorri. No ateliê, em sua casa, no Campo Belo, ao lado da nova série de pinturas que vem criando este ano, a artista, de poucas palavras, fala ainda que filmando, ela “perde a liberdade”. A cineasta concorda: “É diferente se relacionar com uma pessoa e filmar uma pessoa”. No caso da filmagem nas docas, a diretora usou uma teleobjetiva “para afastar bem a câmera”. “Uma das coisas que fiz foi entrar no filme para ficar mais uma conversa do que um depoimento. Queria que Tomie ficasse à vontade. Queria tirar, exatamente, as entrelinhas. Eram mais importantes as entrelinhas do que o depoimento em si”, continua Tizuka.
O porto de Santos, que abre a narrativa, é uma localidade simbólica por vários motivos. O projeto de Tomie, documentário de 35 minutos, nasceu em 2008 na época das comemorações do centenário da imigração japonesa no Brasil. Depois de já ter feito Gaijin e sua sequência, Tizuka Yamasaki conta que a única personalidade que gostaria de abordar em uma nova obra com referência ao Japão seria Tomie Ohtake. “Na verdade, ela não é imigrante, mas carrega a fisionomia japonesa”, diz a diretora sobre a artista, naturalizada brasileira.
Nas docas, a cineasta relacionou aquele ambiente portuário onde Tomie chegou, aos 22 anos, com a ideia de fortaleza que identifica na produção e trajetória da pintora e escultora. “As cores, as ferragens, aquele amarelo, laranja, a força, me lembrou muito a obra da Tomie.” Na praia do José Menino, em Santos, ainda, a artista inaugurou, em 2008, ao lado do príncipe Naruhito, a grande onda vermelha verticalizada que se tornou um dos monumentos de comemoração da presença japonesa no País. No documentário, a escultura torna-se emblemática com as belas tomadas feitas pelo fotógrafo André Horta. Outra ousada obra pública, no interior do Auditório do Ibirapuera projetado por Niemeyer, também é um destaque no filme.
A construção de um retrato denso de Tomie Ohtake vai se fazendo de forma sutil, natural, ao longo do documentário de Tizuka Yamasaki. Entre frases curtas, a carismática artista coloca, pontualmente, sua maneira profunda e livre de lidar com questões complexas. Como sua relação com o zen: “No Japão, é tudo zen. Falam zen, zen. Eu nem pensava nisso. Zen é o que você está fazendo. É o movimento de uma pessoa”. Ou como o círculo é mais do que uma forma, um símbolo de persistência, resistência e paz.
Mesclados às falas de Tomie, depoimentos críticos de Paulo Herkenhoff, Agnaldo Farias e Miguel Chaia traçam temas importantes na obra da artista, como o diálogo entre o Oriente e o Ocidente em sua poética abstrata; a dimensão cósmica na interpretação de suas formas e gestos; e a dualidade de ser delicada e forte ao produzir nas escalas que vão do íntimo ao monumental. De sua arte, ainda, Tomie cita o apreço pelo pintor Mark Rothko e reforça a atitude autônoma que tomou desde o início de sua carreira, iniciada tardiamente, quando tinha quase 40 anos.
Entretanto, são as passagens de intimidade com a artista que dão a verdadeira tônica do documentário. Um dos religiosos almoços de domingo com a família é aberto a todos ao ser filmado, assim como um dos jantares que, mensalmente, ela convoca na Galeria Deco para conversar com amigos. “Tomie é muito afetiva”, resume Tizuka, que registrou, em 2013, a grande fila de pessoas a cumprimentar a artista na inauguração da exposição de seu centenário de vida. Tomie os recebeu, cada um, pelas mãos. Um bonito desfecho para a obra.
TOMIE
Dir.: Tizuka Yamasaki. Gênero: Documentário (Brasil/ 2014, 35 min.). Classif.: Livre.