Nascido em Sobral, interior do Ceará, em 1890, o pintor acadêmico Raimundo Cela (1890-1954) não tem no Sudeste a projeção de um conterrâneo seu como o modernista Antonio Bandeira (1922-1967), evidente injustiça em se tratando do melhor aluno de Eliseu Visconti (1866-1944), um artista que, aos 27 anos, conquistou o prêmio mais cobiçado do Brasil, o de Viagem ao Exterior, do Salão Nacional de Belas Artes (em 1917). Numa iniciativa da galeria Almeida & Dale e com patrocínio da Minalba, o Museu de Arte Brasileira da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap) corrige essa injustiça, exibindo a maior retrospectiva dedicada ao artista, com 126 obras de um desenhista, gravador e pintor excepcional.
A gravura de Cela é, sem exagero, de uma perfeição técnica comparável à do mestre espanhol Goya (e há um exemplo disso nesta página, a água-forte Bumba Meu Boi, concebida em 1923). Como se não bastasse, ela encontra correspondência em Goeldi (1895-1961), na empatia do gravador carioca pelos seres marginalizados. Já a pintura do cearense, que não se deixou seduzir pela sereia do modernismo, manteve suas características acadêmicas sem deixar de refletir as mesmas preocupações dos modernos – só para ficar num exemplo, basta notar o tratamento da luz tropical em suas últimas pinturas, em tudo semelhante à “fase branca” do seu contemporâneo venezuelano Reverón (1889-1954), morto no mesmo ano, em que as figuras são diluídas na luminosidade caribenha.
Quem conhece a luz do litoral do Ceará reconhece imediatamente a mesma luta de Cela, que estudou na Europa, para enfrentar essa luz que cega, não permitindo aos pintores dos trópicos almejar o contraste que a luz baixa europeia oferece aos mestres holandeses, por exemplo. Um artista do porte de Cela, ainda que tardiamente, tem de ser conhecido no Brasil – e fora dele – como um pintor que, antes de retratar a paisagem do Ceará, registrou o modo de vida de seu povo, em especial as pessoas humildes, os jangadeiros e os párias.
“Ele era um ótimo retratista, mas se recusava a pintar os poderosos”, observa Denise Mattar, curadora da exposição Raimundo Cela, com desenho cenográfico de Guilherme Isnard. Compreensível. A despeito da forte ligação com seu pai, Raimundo Cela teve de trabalhar para pagar seus estudos no Rio de Janeiro e, mesmo na França, onde viveu com uma bolsa de dois anos, preferiu morar na rural Dampierre, primeiro por razões econômicas, mas, principalmente, para ficar próximo dos trabalhadores, presentes em desenhos e gravuras da exposição – certamente as obras de maior impacto da mostra.
Em quase todos os casos, Cela encarava esses desenhos e gravuras como esboços para suas pinturas de paleta clara, luminosa, em evidente contraste com a vida escura dos jangadeiros, pescadores, vendedores de cerâmica, vaqueiros e operários, como os da aquarela Oficina (1933), reproduzida na foto maior que ilustra esta página. “Ele foi aluno de Frank Brangwyn, um mestre da gravura em metal, o que explica os jogos de luz e sombra de Cela”. Brangwyn, um belga de origem britânica, dividia com o cearense a devoção ao homem comum. Se o mestre generoso (que doou suas obras a museus) ajudou a Cruz Vermelha e os orfanatos, o aluno retratou cenas da história dos deserdados do Ceará com a mesma paixão.
Embora não esteja fisicamente presente na mostra, por causa de suas dimensões, o painel A Abolição dos Escravos (1938) retrata um episódio que poucos no Sudeste conhecem: em 1884, quatro anos antes da Abolição, o Ceará foi a primeira província do Brasil a libertar os escravos. Um prático da Capitania dos Portos, Francisco José do Nascimento (1839-1914), conhecido pelo apelido Dragão do Mar, liderou uma greve entre os que transportavam os escravos de jangada para os navios.
O painel é do ano em que Cela mudou-se da pequena cidade litorânea de Camocim para Fortaleza. Segundo a curadora, a temática do pintor não mudou na capital, mas sua abordagem ficou mais vigorosa. “O homem forte que enfrenta o mar numa frágil jangada, o movimento dos corpos, as rápidas pinceladas, tudo isso se fundiu com a construção rígida, fruto de sua formação como engenheiro”, reflete Denise Mattar.
Curiosamente, o cineasta norte-americano Orson Welles filmou o documentário inacabado Its All True (1942) na época em que Cela preparava o esboço da tela A Virada (1943), também na mostra, obra sobre um naufrágio – igualmente o tema do filme de Welles, sobre a viagem de Jacaré e mais três jangadeiros do Ceará ao Rio de Janeiro, em que o líder morreu afogado. Fotos de Chico Albuquerque, responsável pelos stills do filme de Welles, estão na exposição de Cela, homem sofrido, que enfrentou um AVC, voltou a pintar e morreu como professor da Escola Nacional de Belas Artes, onde tudo começou.
RAIMUNDO CELA. Museu de Arte Brasileira da Faap. R. Alagoas, 903, tel. 3662-7198. 2ª, 4ª, 5ª e 6ª , 10h/19h. Sáb., dom., feriados, 10h/18h. Fecha 3ª. Grátis.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.