Numa audição às cegas do álbum As Blue as Red é impossível não jurar tratar-se de uma nova cantora americana. Primeiro, pela pronúncia perfeita de um inglês escorreito. Depois, por conta do timbre, do uso do vibrato no final das frases, da capacidade de improvisação e do total controle rítmico, melódico e harmônico. Uma voz linda, potente, cheia de sentimentos, como na melhor tradição das divas do jazz, do blues e do soul. A sessão e a certeza prosseguem até a faixa de número seis, quando surgem versos cantados num português não menos sublime.
Nesse momento, uma centelha de nacionalismo verde-amarelo apareceu neste ouvinte que vos escreve, mas foi logo destruída pelo acento lusitano da intérprete. Então, ficou claro que todo o sentimento da voz não vem do rio Mississipi, mas sim do Tejo, afinal, a alma da música negra americana é a mesma do fado. A dona da voz é a portuguesa Elisa Rodrigues, uma das grandes revelações da cena mundial do jazz nos últimos anos e que chega agora ao seu segundo álbum.
Elisa explica: “Sempre consumi muita música cantada em inglês e, enquanto cantora de jazz, dei os meus primeiros passos em inglês também, porque essa é a língua matriz desse gênero musical. Pode ajudar o fato de ter crescido com amigas de todas as nacionalidades e de o inglês ter estado sempre presente ao longo da minha vida. Também trabalho com ingleses e passo várias temporadas em que só falo inglês de manhã à noite. Muitas vezes dou por mim a pensar em inglês”, disse ela ao jornal O Estado de S. Paulo.
Além de pensar em inglês, Elisa também compõe belas canções na língua de Cole Porter, Ira Gershwin e Duke Ellington. As Blue as Red é a prova disso. Das 11 faixas do álbum, 9 trazem a assinatura de Elisa, sozinha ou em parcerias, sendo 7 delas em inglês. O disco foi lançado em maio na Europa e está disponível em lojas virtuais ou nos principais serviços de streaming.
Elisa começou a estudar música ainda na infância. Na adolescência, nos anos 1990, foi com os pais assistir a um show de jazz da cantora Maria João, sua conterrânea. Apaixonou-se pelo gênero. Aos 24 anos, em 2012, lançou seu primeiro álbum: Heart Mouth Dialogues, em parceria com o pianista Júlio Resende. O disco traz sofisticadas versões de clássicos do jazz, como You Don t Know What Love Is (sucesso com Billie Holiday) e Cry Me a River (imortalizada por Ella Fitzgerald).
Mas o ponto alto desse trabalho de Elisa e de Resende é mesmo verter para o jazz canções do soul, do pop e do rock, entre elas Aint no Sunshine (Bill Withers) e Dumb (Nirvana). Um destaque mais do que especial é a interpretação à capela de Elisa da canção Sonhos, do brasileiro Peninha, gravada por Caetano Veloso no álbum Cores e Nomes. Chega a lembrar Elis Regina (1945-1982), considerada por muitos a mais visceral cantora brasileira. “Tenho a maior afeição pela MPB. Um gosto que me foi passado pelo meu pai, que me mostrou tudo o que conhecia e me fez sempre prestar atenção aos poemas e aos arranjos”, diz. Alguma admiração especial? “Chico Buarque. Há poucos no mundo com mestria que se lhe possa comparar.” Na sequência do álbum de estreia, Elisa começou sua parceria com a banda de art rock britânica These New Puritans e se dedicou a gestar o álbum As Blue As Red, que tem sonoridade diferente de seu irmão de estreia. “Este álbum não é um álbum de jazz. Mas todos os músicos envolvidos no processo têm suas raízes no jazz e isso sente-se. Diria que é um álbum de canções, redondas e quentes, com os pés no jazz e com a cabeça nos blues e na pop”, define Elisa.
Os planos dela para o futuro incluem o Brasil. “Poder mostrar a minha música ao público brasileiro é um dos meus sonhos mais antigos. Sinto que tenho coisas bonitas para dar. Pode ser que um dia o sonho se concretize”.
Tomara. Vamos torcer.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.